O Buraco- Lucas Vitoriano
Beto acordou com a luz distante do sol castigando seu corpo. Era o terceiro dia em que estava preso naquele buraco, uma armadilha feita para algum animal provavelmente, mas ele acabara caindo pelo mais puro azar e quebrando a perna esquerda com o impacto. O buraco não era muito profundo, nem mesmo grande, mas ao menos tinha espaço o suficiente para lhe dar uma mínima mobilidade. De formato semelhante ao circular, tinha cerca de quatro metros de diâmetro. A terra seca e dura não era uma companheira agradável, mas era tudo que ele tinha.
Beto era um homem vigoroso, vinte e poucos anos, de porte atlético e rosto bonito, mas nada daquilo importava ali. Sua perna latejava de dor, estava dobrada de um jeito esquisito, o osso totalmente quebrado. Entretanto, mesmo que estivesse sem ferimentos, Beto não achava que sua sorte seria diferente. Não havia como escalar o buraco, as paredes eram ásperas, de areia dura, mas não dura o suficiente para suportar seu peso. Tentara várias vezes e não tivera resultados nem sequer perto de satisfatórios.
Durante o primeiro dia de seu cárcere e isolamento, gritara a plenos pulmões em busca de ajuda, mas ela não veio e ele sabia o porquê. Estava em um fim de mundo, em uma trilha em um local isolado onde ninguém passava a quilômetros de distância. Sim, era esse o caso. Solidão e paz foram os fatores que o fizeram escolher aquela trilha para um passeio que, teoricamente, deveria ser agradável e revigorante. Aprendera da pior maneira possível que deveria ter cuidado com o que desejasse.
Como os homens não lhe ouviam, gritou por Deus também, em suas orações, mas não foi ouvido, ou, se foi, o senhor o ignorara. Preso ali a três dias, sem nada para fazer além de refletir acerca de sua vida e de seus atos, Beto chegara a conclusão de que Deus tinha motivos mais do que suficientes para ignorá-lo. Talvez o buraco fosse um simbolismo e em preludio de seu destino final, o inferno. Cometera muitos pecados, agora os percebia, tantos que, mesmo com todo o tempo disponível que seu isolamento lhe oferecia, era difícil enumerá-los.
Para começar, era um péssimo marido. Tivera muitas amantes e, ironicamente, nem um bom amante era também. Tratara a esposa com descaso, não reconhecendo todo o esforço que ela fazia cuidando da casa, ajudando-o a lidar com os problemas de bebida. Nas rodas de amigos, quando passava as noites em bares, falava com desdém do sexo que ela lhe proporcionava, humilhando-a na frente de todos. Gabava-se das amantes também, as quais colecionava como troféus.
Nunca se importara muito com isso, mas a solidão e o desespero de ficar preso em um buraco por três dias, sem esperanças de uma salvação, dava-lhe uma humildade e um sentimento de culpa que, em condições normais, jamais brotariam em seu coração orgulhoso e egoísta.
A vida no buraco, se é que se podia chamar de vida, era monótona, marcada por desespero e, lenta e progressivamente, uma aceitação do destino inexorável que dele se aproximava. Beto havia cavado um buraco dentro do buraco, o que soava cômico de uma forma deplorável, onde depositava seus dejetos. Desde o dia anterior percebera que sua urina estava misturada com sangue. Não entendeu os motivos e concluiu que não havia porque se preocupar tanto. Iria morrer em pouco tempo e, certamente, urinar sangue era uma preocupação irrisória.
Sua alimentação resumia-se a algumas formigas que encontrava por acaso. Comera uma raiz uma vez, mas a coisa lhe fez mal, dando-lhe uma dor de barriga infernal além de uma crise de vômitos. Ele ainda estava a contar os seus pecados. Se seria julgado no reino celeste, era melhor aproveitar seus últimos dias preparando sua defesa.
Então, péssimo marido e péssimo amante. Ainda não havia explicado o porquê desse último. Era um péssimo amante por descartar suas parceiras sem o menor peso na consciência. Uma vez engravidara uma delas, Luiza Maria era seu nome, a moça foi-lhe exigir que reconhecesse o filho e ele pedira a um primo, policial militar, para dar um susto nela. Nunca soube o que o seu primo fez ou disse a moça, apenas que não a matou, mas fato era que Luiza nunca mais o procurou. O filho, se não tivesse sido abortado, deveria ter uns cinco anos agora.
Pensando nisso, ai estava mais uma alcunha para sua lista de pecados, péssimo pai. Beto pensava nisso enquanto olhava as estrelas, já era noite do terceiro dia, seus devaneios faziam o tempo passar voando. Adormeceu com esse pensamento na cabeça e acabou por ter um sonho bizarro, com ares de sobrenatural.
Até em seu sonho continuava no buraco, o que parecia uma crueldade grande demais mesmo para um pecador como ele. Entretanto, havia algo no sonho que deixava claro não se tratar da fria realidade, pois vultos o observavam do lado de cima, coisas de formatos vagos que mantinham-se em silêncio, tão imóveis que mais pareciam árvores.
Beto gritou por ajuda. Sabia tratar-se de um sonho, mas suplicou por misericórdia mesmo assim. Os vultos nada fizeram ou disseram, apenas o observavam, imóveis. Beto contou três deles. Acordou no dia seguinte, o quarto dia, com o canto de algum pássaro que parecia zombar de seu confinamento. Praguejou, mas o pássaro, que se encontrava fora de seu campo de visão, prosseguiu com sua cantoria alegremente.
A perna de Beto estava inchada, arroxeada em algumas partes e ele não sentia mais dor nela, na verdade, nem não sentia nada. Isso o preocupava. Deu-lhe tapas com a mão, mas nada sentiu, era como se estivesse tocando em algo que não fazia parte de seu corpo.
Durante esse penoso dia, deteve-se em suas reflexões, perguntando-se como seria o seu filho, nem sequer sabia o nome do garoto, se estava vivo ou morto. Caso saísse daquele buraco, caso vivesse, prometeu que iria visitar o menino. Ainda não era tarde demais para construir um laço paterno.
Sentia-se fraco e enjoado, as esperanças iam esvaindo-se pouco a pouco, assim como suas energias. Seus sonhos prosseguiam, confusos e sinistros, com os vultos a observá-lo do lado de cima. Se estariam julgando-o, divertindo-se com seu sofrimento ou simplesmente observando por curiosidade Beto não saberia dizer. Os vultos o incomodavam, embora a sensação de não estar sozinho fosse reconfortante. Contara cinco vultos, o número aumentara.
No quinto dia, Beto ficara deitado o tempo todo, murmurando, implorando perdão por seus pecados e suplicando ajuda. Não tinha mais forças para levantar-se, emagrecera visivelmente, a perna ficara totalmente roxa, com uma aparência repugnante de se ver.
A imagem de sua esposa povoava seus pensamentos. Beto perguntava-se se ela pensava nele, se estava preocupada, se procurara ajuda. Sim, fora um péssimo marido, mas teria sido tão ruim ao ponto de não merecer ao menos lágrimas de tristeza e dor?
A partir do sexto dia, a mente dele se tornara confusa, seu senso de realidade estava tão fragmentado que Beto não mais conseguiu medir a passagem do tempo, assim como não conseguiu mais distinguir sonho de realidade. Frequentemente via os vultos a observá-lo de cima, havia mais deles, uma dezena, doze, mais que isso. Não falavam nada, não mexiam-se. Seriam espíritos? Estaria ele a ver os mortos porque também morrera? Beto não tinha certeza. Não sabia de mais nada.
Dores de cabeça e diarreia o afligiam incessantemente. Perdia e recobrava a consciência o tempo todo e, fosse alguma assombração real ou loucura sua, os vultos permaneciam observando-o, todo o tempo. Agora, aumentaram tanto de número que ele não conseguia mais contá-los. Os vultos formavam uma pequena e silenciosa multidão que o olhavam com, o que parecia, expectativa.
O tempo passava, indiferente aos sofrimentos do moribundo. A magreza se acentuara, os ossos de Beto agora se projetavam de dentro para fora, como se quisessem rasgar sua pele. Toda sua beleza e vigor o abandonara e ele se reduzira a uma figura esquelética, mal se movia, mal falava, apenas muito pateticamente respirava.
A razão lhe escapava, mas a morte, que ele começara a ansiar, ainda não o havia tocado com seus lábios frios, não lhe dera o beijo final. Estranhamente, em seus últimos momentos, começara a pensar muito em sua mãe, já falecida. Viera ao mundo por ela e, talvez, retornasse até ela no momento de seu fim. Via o rosto dela entre seus delírios, era esse seu único conforto, ela lhe sorria apenas, como um anjo. Beto sentia uma imensa e infinita paz, uma dormência e uma vontade de se render e deixar que ela o levasse para qualquer lugar que fosse.
Entretanto, os vislumbres de sua mãe eram intercalados pelos vultos que o observavam. Beto sentia que duas forças, uma representada pelos vultos e outra pela sua mãe, lutavam por sua atenção, por sua alma. Desejava voltar ao seio materno, mas os vultos, sempre silenciosos, insistiam em lhe visitar, assombrando-o com suas presenças sinistras.
Em sua loucura, entre a vida e a morte, Beto despertou em uma noite estrelada com tamanha lucidez que chegava a ser assustador. Como um lampejo, sua compreensão retornava, talvez toda sua força tivesse sido guardada para aquele momento, aquele derradeiro momento. O homem, que agora era tão magro que mais parecia um cadáver, com as formigas a caminharem pelo seu corpo, comendo-o como se já morto estivesse, sabia que seu fim chegara. Estranhamento não sentia mais medo.
A boca, ressecada, não mais tinha forças para pronunciar som algum, mas sua mente estava lúcida, ela entendia o que estava acontecendo, o que iria acontecer. Não surpreendeu-se ao notar sua mãe ali ao seu lado, ajoelhada, sorriso amoroso no rosto, vestida de branco, as mãos tocando com ternura em seu rosto. Ela nada dizia, não precisava. Beto entendia o porquê dela estar ali. Estava ali pelo mesmo motivo dos homens-vulto.
Sim, eles também estavam presentes. Não mais observavam-no de cima do buraco, mas estavam ali, ao seu lado, rodeando-o a apenas poucos centímetros de distância. Eram inúmeros, mais de cinquenta, talvez mais de cem, uma multidão interminável. Não havia como todos eles caberem dentro do pequeno espaço do buraco, mas Beto sabia, com uma convicção inabalável, que limitações como o espaço não eram nada para aquelas criaturas.
A mãe, ou aquela coisa que assumia a forma de sua mãe, pois agora ele percebia que aquela presença ia muito além da humana, tocava-lhe o rosto com ternura, convidando-o a uma eternidade calma, fria, submissa e estática. Já os vultos, aquela multidão de anônimos, lhe sugeriam outro caminho, desconhecido, tortuoso, mas com o consolo de ter companheiros em suas dores, algo próximo de uma família. Uma família dou sofredores melancólicos, mas ainda assim, uma família.
Qual o caminho certo? Qual o errado? Haveria mesmo certo ou errado? A mãe era certamente mais afetuosa, mas sua presença era como uma droga inebriante, trazia calma e talvez felicidade, mas roubava a razão. Já os vultos, prometiam sofrimento e temores, mas também companhia nas dores, além de lucidez.
A mãe acariciava seu rosto, sorrindo ternamente. Os vultos apenas o observavam, frios, pacientes. Beto fechou os seus olhos. A resposta surgiu em sua mente, sabia que caminho deveria tomar. Seu corpo já não tinha mais salvação, mas sua alma, essa ainda podia seguir em frente.
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