Abiogênese- Augusto Luiz Melare
NAQUELE SÁBADO, UMA MULHER DIFERENTE apareceu no portão de Jana. Era uma mendiga descalça e farroupilha. Sua pele negra clara, exibindo sinais de idade em torno dos olhos estreitados, estava suada, castigada pelo sol da tarde. Suas unhas dos pés pareciam cascos amarelos de camelo. Ela estendeu a mão de sofredora através das barras do portão e pediu:
— Por favor, minha senhora. Eu tenho fome! Me arruma um prato de comida.
Jana aproximou-se com desdém. Assim que ouviu o pedido, disse que não podia ajudar naquele momento. Estava ocupada se preparando para receber visitas.
— Por favor — a mulher insistiu. — Eu só preciso de um pouco de comida.
Jana irritou-se. Empurrou com ignorância a mão da mulher para longe das barras de seu portão, ao mesmo tempo tentando não a tocar, e depois limpou a mão na calça jeans.
— Sai logo daqui! — Disse como se tentasse espantar uma coisa ruim. — Eu não tenho comida em casa. Vai logo caçar o que fazer, sua vagabunda!
A mendiga assustou-se, recolheu seu braço e olhou nos olhos de Jana, que ainda estava enojada por tocá-la. Aos poucos, uma ira grande cresceu na mulher humilhada e transformou seu semblante. Suas rugas desapareceram, seus olhos ficaram amarelos e seus dentes, antes podres e cusparentos, regeneraram e se transformaram em presas limpas. Ela apontou o dedo para a dona de casa.
— Se tem mesmo a audácia de humilhar uma pessoa necessitada desta forma e me negar comida, então sofra! Você diz que não tem nenhuma comida em casa. Então que assim seja! A partir de agora, você vai perder até mesmo as cascas que joga no lixo!!!
Falou e foi embora. Jana, mesmo querendo muito esbravejar contra aquela desagradável visita, não teve nem tempo de retrucar, pois a mulher foi muito rápida. Pareceu ter saído de lá flutuando e sua voz era como a de uma entidade. Mas que mulher seria aquela. Com certeza não era uma mendiga normal, visto que podia se transformar e sair flutuando. Devia ser um tipo de espírito que vem à Terra para testar os humanos.
Jana ficou um pouco assombrada, pois percebeu claramente a transformação e a praga que havia sido rogada. No entanto, não deu muita importância. Antes de dormir, poderia resolver aquilo com quinze Ave Marias e quinze Pai Nossos.
Sem mais nada a fazer com seu descontentamento, a dona de casa entrou. Precisava cuidar dos preparativos na cozinha. Suas visitantes chegariam em menos de uma hora.
Entrando em casa, Oscar, seu filho, pergunta o que aconteceu.
— Era apenas uma mulher louca, toda suja, moradora de rua pedindo comida. Eu disse que não tinha nada pra dar pra ela.
— Você sabe que isso é mentira, né? — Disse o filho, com um sorriso jocoso, sentado no sofá.
— Não, eu não vou dar minha comida pra vagabunda não.
Jana voltou aos preparativos enquanto Oscar jogava video game na sala. Queria fazer biscoitos de abóbora. Descascou a fruta, jogou os pedaços da casca no lixo, cortou-a em cubinhos e colocou-os para cozinhar. Quando abriu o armário para pegar um saco de farinha, encontrou uma barata, tomou um susto! Muito depressa, ela derrubou o bicho no chão e seu filho o matou. Não muito tempo depois, os biscoitos estavam prontos na mesa da sala de jantar com chá, pão, geleia e manteiga.
Dim dom! A visita chegou na hora em ponto. Eram as senhoras Adelaide e Cleide, do clube de tricô. Estavam lá para falar sobre as peças que fariam para o bazar da igreja e jogar conversa fora. As duas tinham cara de boazinhas e Adelaide inclusive parecia ser uma velha chique, com boa postura e roupas bonitas, então parecia ser uma atitude muito normal e inocente fofocar com elas. O tricô quase não era mencionado na reunião, como se ela tivesse sido criada apenas para reforçar laços afetivos entre tagarelas.
Conversa vai, conversa vem, e as senhoras adoraram os biscoitos. No entanto, Cleide estava com medo de comer muitos.
— Olha, querida. Eu não vou comer muitos, porque posso ter problemas com a diabetes, mas eles estão maravilhosos.
— Não se preocupa, Cleide — disse Jana, toda gentil. — Eles quase não têm açúcar. Por falar nisso, eu vou pegar uma fruta na geladeira pra você.
Ao abrir a gaveta da geladeira, ela se assustou e imediatamente engoliu o susto para que ninguém o percebesse. Havia duas baratas na gaveta de vegetais; uma sobre uma cenoura esburacada, balançando suas anteninhas, e outra zanzando de um lado para o outro. Era estranho que a cenoura estivesse com buracos, pois ninguém guardava vegetais mordidos na geladeira.
Jana tomou coragem, pegou as duas baratas com uma mão e uma maçã verde com a outra. Esmagou as baratas e as jogou no lixo ao lado da pia. Lavou as mãos e a maçã muito bem, passando bastante detergente. Sentiu nojo! Pôde sentir o suquinho das baratas passando pelo meio dos dedos quando as esmagou. Depois de lavar muito bem as mãos e a maçã, desfranziu a cara, fez uma expressão de anfitriã gentil de novo e voltou à sala de estar.
— Aqui está a maçã, Cleide. Pode comer, não se acanhe não. — Entregou a fruta à senhora.
Todavia, Jana não se sentou logo após. Uma coisa havia chamado sua atenção no lixo, então voltou para ver o que era. Ao olhar dentro, não tomou um susto, mas quase vomitou de nojo. Não havia nenhuma casca de abóbora nem de cebola lá, mas um monte de baratas, uma para cada pedaço de casca. Ela pensou rápido. Amarrou a sacola com todos os insetos lá dentro o mais rápido que pôde. Apenas um escapou e correu para baixo da pia.
Enquanto isso, na sala de jantar, as senhoras Adelaide e Cleide conversavam com o jovem Oscar.
— Quando você termina a escola? — Perguntou Adelaide, colocando mais um biscoito de abóbora na boca.
— Neste ano mesmo. Faltam só três meses pra dizer adeus àquela espelunca.
Adelaide achou estranho o sabor do biscoito. Estavam muito gostosos até então, mas aquele último tinha um sabor rançoso e poeirento, muito parecido com certo fedor. Ela franziu o cenho enquanto pensava rápido e revirava aquela massa molhada em sua boca com a língua.
— Acha que a escola é uma espelunca? Mas de arte você gosta, não é? — Indagou.
— Sim. Adoro!
— Pega seus trabalhos lá ara eu ver! — Disse com animação teatralizada. — Eu adoro ver. Tem coisa do meu filho que eu guardo até hoje. Pode pegar, que eu quero ver.
Oscar levantou-se e subiu para seu quarto, onde estavam guardados seus materiais escolares. Assim que ele saiu de vista, Adelaide mexeu no prato de biscoitos, revirando-os. Tomou um susto. Duas baratas fedidas saíram do prato e correram pela mesa. Cleide quase soltou um gritinho enquanto tentava espantar os bichos asquerosos com as mãos moles. Adelaide sentiu uma coisinha estranha em sua boca e a pegou com as pontas dos dedos. Era a cabeça de uma barata.
Quando Jana voltou para a sala de jantar, encontrou as senhoras em pé. Suou frio. Não queria que elas tivessem visto nenhuma das horripilantes baratas, que eram todas grandes e fedidas. Mas já era tarde demais. Não se sabia como aquelas duas malditinhas tinhas chegado ao prato de biscoitos, mas elas o fizeram. As duas senhoras ficaram olhando para Jana atônita por um momento, sem saber o que dizer. Adelaide, com uma cara de quem comeu e não gostou, pensava se aquele inseto tinha passado seu gosto para o biscoito roçando suas costas nele ou se o próprio biscoito tinha um pedaço de.... E veio o vômito.
Oscar chegou bem naquela hora. Ao perceber que algo estava errado, ficou apreensivo.
— Oscar, pega um pano na lavanderia!! — Sua mãe exclamou.
Jana pegou na mão de Adelaide enquanto ela se apoiava numa cadeira.
— Dona Adelaide, tem algum remédio que a senhora toma? — Voz preocupada. Ela imaginava que sabia o que tinha acontecido. Alguma barata devia ter aparecido na mesa para uma reação tão forte acontecer.
— Não se preocupe, querida. — Disse Cleide, pegando a outra mão de Adelaide. — Nós já vamos embora. Quando ela passa mal desse jeito, precisa ficar de cama um pouco.
— Sim, nós já vamos. Não se preocupe comigo.
Enquanto Jana limpava o vômito do chão, Oscar conduziu as senhoras espantadas até a saída. A dona de casa não entendia como umas baratas poderiam fazer uma pessoa vomitar de repente. Talvez elas nem tivessem visto as baratas, que foram encontradas e detidas na cozinha. Oscar voltou à sala de jantar e olhou para sua mãe. Ela olhou de volta para ele, desassossegada.
Oscar olhou para o lado. Levantou as sobrancelhas.
— Mãe, olha!
Era a mesa. Havia mais baratas no prato de biscoitos, dentro dos pães e inclusive saindo de dentro do pote de manteiga, meladas. Eram umas dez. Estavam calmas e rastejavam como se tivessem acabado de acordar. Jana viu aquela cena asquerosa e deu um grito. Os bichos se assustaram e começaram a correr e a voar. Naquele alvoroço, mãe e filho abaixaram suas cabeças para não serem atingidos por nenhuma barata voadora. Jana bateu o rodo sobre a mesa para matar os insetos que pudesse. Depois, correram para a cozinha.
— Oscar, o que está acontecendo?!
— Eu acho que... — o rapaz estava ofegante de susto. — Acho que... eu não sei. — Então ele, por curiosidade, abriu a geladeira. — É isso, mãe! A comida está se transformando em baratas. Elas estão vindo por geração espontânea!!!
A geladeira estava cheia de alimentos esburacados. Para cada buraco, havia uma barata. Elas corriam naquele lugar gelado buscando um jeito de sair. Algumas saíram voando. Uma delas pousou na testa Jana, que deu um grito e correu par apegar o veneno.
— Eu não quero nem saber se é a minha geladeira! Vou tacar veneno em tudo e depois a gente lava!
Oscar abriu o armário movido por sua curiosidade. Dentro, viu cada pacote de farinha e de bolacha cheio de baratas. Ficou espantado! Nunca tinha imaginado um fenômeno daqueles e nunca tinha lidado com tantas baratas. Precisaria de mais de uma lata de veneno para matar todas.
Jana estava aterrorizada. Chegou na cozinha de novo espirrando veneno em toda a geladeira. Ela gritava e mantinha os dentes cerrados para que nenhum bicho entrasse em sua boca. Como uma louca, ela abriu as panelas e os potes e os envenenou também, sentindo um asco maior a cada recipiente que abria, pois estavam cheios de insetos. Naquele momento, fazia sentido o que a mendiga havia dito. Naquele momento, Jana não tinha nenhuma comida em sua casa, nem para si nem para doar a alguém. Era uma maldição.
Seu filho, encarando os pacotes do armário de maneira perplexa e fixa, começou a suar frio. Estava passando mal. Os pacotes de salgadinho se mexiam.
— Mãe.... Mãe.... A comida virou barata. A gente também comeu a comida, mãe.
Colocando a mão na barriga, ele se apressou para o banheiro. Tinha comido um prato enorme naquele dia e sentia uma quantidade enorme de patas se mexendo dentro se seu intestino. Jana não prestou atenção. Naquele momento, estava mais séria e empenhada em matar cada barata asquerosa da geladeira. O chão estava ficando todo marrom com os cadáveres. Ela só entendeu o que o filho disse quando sentiu algo rastejando para forra de sua garganta.
No banheiro, sentado na privada, Oscar vomitou e se debateu para espantar os bichos que saiam de sua boca. Na cozinha, caída no chão e sentindo muita dor de barriga Jana vomitou e cagou baratas. Forçando sua garganta e seu ânus a se abrirem, os insetos saíram aos montes e cobriram eu corpo. Os que saiam por sua boca traziam o gosto azedo do estômago. Os que estavam mais fundos em seu interior faziam suas entranhas doerem, como numa cólica intestinal. A mulher chorou e se esperneou, arrependida por ter negado um simples prato de comida a uma mendiga.
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