Dança de véus- David Leite

 



Cambaleando, o jovem rapaz tenta ainda manter certa postura após as várias doses do mais tóxico uísque que pode encontrar nas ruas àquela altura da madrugada. Embora aquele líquido castanho ingerido não pudesse ser diferenciado de veneno, mais venenosas foram aquelas semanas, aqueles dias.  Precisava matá-los de algum jeito. E ainda algo restava a ser morto. 

Com a atenção completamente voltada para manter retos os seus passos, olvidava de olhar ao seu redor. Então, levantando o olhar para tentar se localizar percebe mesmo com o julgamento prejudicado, que seguia uma rua completamente estranha a ele.  Estreita, mal iluminada, onde bocas de lobo soltavam uma fumaça esbranquiçada. Os prédios, de poucos andares, com paredes de blocos arruinados e de tinta gasta, tinham uma ou duas janelas iluminadas, mas nenhum rumor ou sinal de vida, tanto na rua quanto vindo de dentro dos prédios. 

Angustiado, ainda mais perdido do que imaginou, o jovem se vira e tenta retomar os passos por aonde veio. Uma densa neblina, cuspida dos bueiros, turvava ainda mais sua visão. Ele se apressa, mesmo cegamente, em voltar para a rua principal, ao menos. 

Quase um minuto inteiro apressado e a estreita e estranha rua não dava sinais de que acabaria.  As luzes amareladas dos postes se dissolviam na névoa, e nada iluminavam. Ofegante, ele se detém por um momento. Outros passos, então, puderam ser ouvidos logo mais a frente do caminho. Alguém vinha pela rua em sua direção. Nesse momento, o rapaz esboça um sorriso de alívio. Alguém para ajudá-lo. Mas o alívio rapidamente se torna em pavor. Quem estaria numa rua dessas agora? Se não perdido como ele, motivos piores levariam alguém aquele lugar ermo.

O jovem rapaz então, num acesso de pânico, se volta para rua e começa a correr para longe dos passos. 

Chega, finalmente, a um beco. Suspirando, com calafrios subindo pela espinha, ouve atrás de si ainda os passos. Calmos e resolutos. O rapaz se recosta na parede que terminava a rua. Desesperado, no meio da quase escuridão, então, um brilho avermelhado de néon pisca incessante em uma entrada ignorada da rua. “SAÍDA”, dizia o letreiro. Exatamente o que ele buscava. Uma saída... para tudo.

Sem pensar vai em direção ao luminoso aviso e avança para a porta abaixo dele, que abre com um som metálico, arranhando o chão.

Ao abrir, depara-se com um salão de bar. As paredes ricamente enfeitadas por quadros e adereços. As poucas mesas dispensadas ao redor de um pequeno palco, e no balcão à direita da entrada, um barman finamente trajado enxugava uma caneca calmamente.

Era exatamente o que o jovem precisava, ele acreditava. Sem tomar muito tempo, fecha a porta atrás de si e se dirige a um dos bancos altos encostados ao balcão, de frente para o garçom.

 - Dia difícil? – O Barman o questiona, amistosamente.

 - Sim. Nem me diga. Dê-me um caubói, por favor.

O barman estende um copo envolto em guardanapo, e o preenche com uma dose de uísque que retirou da prateleira.

 O rapaz o toma de um gole só, e, incontinenti, empurra o copo de volta, pedindo mais uma dose. 

 Depois de mais duas ou três, o rapaz se desinibe o suficiente para começar a desabafar. Começa expor os dissabores pelos quais passou. O barman, condescendente, apalpa seu braço.

 - Eu sei meu jovem. Conheço sua história.  Talvez nossa dançarina possa acalmá-lo e afastá-lo dos pensamentos funestos que o comovem. – O barman o consola, enquanto vira o rosto para o palco, indicando para que o jovem fizesse o mesmo.

Ligeiramente surpreso com o barman e seu suposto conhecimento de si, o rapaz se vira para o palco, onde imediatamente uma luz de refletor se acende, e uma bela mulher de fisionomia firme aparece em lúbricas vestes de dançarina, com véus de várias cores se espalhando ao redor de sua cintura.

Enquanto o jovem, embriagado pela bebida e pela imagem a fitava, a mulher se põe em postura. Estendendo um dos braços, começa a desenhar círculos no ar, enquanto movia o ventre com desenvoltura. Olhos fechados e um sorriso carmesim diabólico em sua face. Mesmo sem música, uma dança airosa se iniciava.

- Quem é você? – O jovem interpela, absorto com a dança.

 - Eu sou aquela que te dá propósitos e nenhum caminho. Eu sou a coreografia dos que dançam as horas que passam. Eu estou atrás de tudo que se move, e na frente de seus destinos. Você sabe quem eu sou...

A dança continua num crescendo, enquanto o jovem abstraído tentava refletir sobre o que ele disse. À medida que bailava, a mulher lançava no ar um a um os véus que cobriam seu colo. O tecido delicado se esticava no ar, maciamente, e se dissolviam em névoas de cores que cambiavam à luz do refletor. O jovem rapaz não conseguia tirar os olhos dela, e o conjunto da dança silenciosa, dos matizes dos véus se esfumaçando na luz o prendiam numa espécie de sonho desperto. O jovem se lassa enquanto a dançarina continua cada vez com mais violência seu bailado. Seus olhos começam a se cerrar, dormentes, a ponto de enxergar apenas um vulto em movimento envolto por mortificada luz em cima do palco.

Quando o sexto véu alaranjado se defumou sobre ele, a jovem repentinamente desperta do delírio. Assustado, olha para o barman, agora com um sorriso maquiavélico.

 - Onde? Onde estou? 

 - Você está onde todos um dia estarão, jovem. Aqui nesse bar, todos um dia passarão para eu servir e julgar.

Assombrado, sem entender completamente o que se passava, o jovem salta do banco e olha novamente para a mulher, que continuava sua dança, pendendo apenas um último véu vermelho a frente de seu abdômen. O barman o fixa com um olhar perturbador.

  - Não há saída, meu jovem. Você entrou aqui para seu juízo, e não pode voltar atrás.

 O jovem se vira e corre até a porta por onde entrou. A saída que procurava lá fora. Com presteza e desespero, puxa a rangente porta de metal para abri-la. Do lado de fora, diante da porta, um corpo caído no chão, mergulhado numa poça de sangue. Um corpo com suas exatas vestimentas...

 - Eu lhe avisei, meu amigo. Não há saída. Apenas seguir em frente agora. – O barman continua, escancarando ainda mais o maligno sorriso. – Eu conheço toda sua história, eu sei para onde você deve ir. Por favor, continua sua jornada. Volte para o espetáculo e, como todos verão, veja o que está através do véu.

O jovem se volta, atordoado novamente. A dançarina continua, com gestos delicados e precisos, arranca o último véu, despindo-se finalmente. Uma luz se acende atrás dela, enquanto ela arremessa o véu para o ar, para frente do rapaz. O jovem caminhava lentamente, sob os olhares maliciosos dos dois, enquanto o manto esvanecia no ar, deixando a luz atrás do palco sanguínea e tétrica. O jovem segue para a luz, atravessando o véu, indo para a saída. Sua saída... Para tudo.



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