Satanal: Lúcifer Sangrando deus- Fabiano Soares

 



Felipe, Marcel e Leonardo. Três doentes que não queriam saber de outra coisa na vida do que ficar alternando o uso de drogas, video game e filmes. Maconha e LSD eram os filmes preferidos dessa galera que usava David Lynch e Baiestorf de vez em quando.

Mas essa noite, era especial. 24 de dezembro, véspera de natal, quando se comemora, na realidade, o privilégio de se ter comida em abundância, a ponto de poder até estragar, colocando ingredientes nada a ver em todos os pratos, como se fosse um tipo de maldição: farofa gostosa? Tcharam! Uva passa pra estragar essa porra! Arroz com milho e ervilha? Cataplimba! Mais uva passa pra foder seu paladar! Tender gostosão? Rataprum! Cheio de cravos pra espantar o Aedes aegypti e você! Hipocritamente falando, comemora-se o nascimento daquele judeu, que virou modinha e acabou deixando de ser um símbolo judaico... Esses três caras aí de cima estão cagando pra Jesus ou qualquer festa religiosa, mas eles são de família com grana e portanto, podem esbanjar com comida nesse dia. E foi em uma noite, há meses atrás, fumando Mario Kart e jogando maconha, que o Felipe definiu como ia ser o natal do trio.

- Mermão, esse ano eu quero um natal do caralho! Nós tamos com dezoito anos, a vida daqui pra frente vai mudar... Faculdade, trabalho, essas merdas. Mas no dia de Jesus, eu quero ver Satã vindo pra reinar nessa porra! Bora fazer nosso Satanal!

- Que porra é essa de satanal, Felipe? Tá doidão? - Marcel perguntava enquanto ainda tentava raciocinar, lento pelo efeito da erva misturada ao álcool.

- Natal de Satanás, cara... Satanal... Burro pacaralho!

Leonardo, que estava assaltando a geladeira pra preencher o vazio psicoestomacal causado pela larica, gritou da cozinha:

- Essa foi horrível, cara... mas enfim, Satanal? Seu cu no meu pau!

Os três riram, seqüeladíssimos, selando um acordo informal do natal (ou da véspera dele, já que é quando rola a glutonice), que por acaso, é a noite a qual estamos nesse momento do conto (problema seu se você tá lendo na data errada...).

A mesa está farta de comida: tem um leitão assado, naquela cor cobre, que só de começar a descrever me dá vontade de ir a um bar vagabundo e pedir um pedaço de pernil com torresmo e engordurar esses dedos que teclam a história; tem um tender, seja lá que merda de bicho é esse, mas aquela bolinha de carne que você conhece do natal; tem farofa de ovos e lingüiça, que dá pra comer até pura; maionese e arroz, que deve sobrar, porque esses putos só vão querer comer carnes e doces; tem pudim, pavê (afinal, alguém tem que fazer a piada), brigadeirão e quindins espalhados na mesa. Mas o que eles gastaram de comida, não deu nem um décimo do que gastaram com otras cositas más. Tem uma barra de maconha que parece uma caixa de bombons da Lacta, e uma cartela, similar àquelas de adesivos que todo mundo tinha na 5ª série, de Power Rangers ou Snoopy. Talvez eu, narrador, esteja entregando minha idade, e talvez vocês estejam pensando "na minha 5ª série não tinha essa merda, não!". Ok, uma cartela tipo uma folha de apostas da Mega Sena, no entanto, só de selos de LSD. Esses caras tão planejando ficar mal hoje!

Começa a noite de Satanal, e a maconha está sendo dichavada enquanto rola "Mourning Palace", a primeira do "Enthrone Darkness Triumphant", do Dimmu Borgir, no aparelho de som. Sim, eles estão naquela idade em que essas músicas são pesadíssimas e chocantes, etc; todo mundo já teve suas certezas dos dezoito anos. Felipe e Leonardo estão fumando maconha enquanto jogam Mario Kart, deleitando-se com as imagens coloridas, contrastantes com o black metal harmonioso que sai do som. Marcel dropou três selos e encontra-se inerte em uma poltrona, olhando para a mesa da ceia.  

Muito tempo se passou, Leonardo perdeu muitas partidas no Mario Kart, e Felipe recebia o troféu do campeonato, quando Leo levantou do sofá.

- Vou comer alguma coisa. Já tenho fome normal, na larica então... E com essa mesa, nham nham!

Marcel continuava na mesma posição, olhando para a mesa, mas certamente a mente dele não estava ali, ao menos não até agora. Leo começou o ataque e pegou um pedaço do pudim de leite condensado, que misturou com um pouco de panetone e uma colher de farofa de ovos. Então Leo pegou um tridente – desses, chiques, que só usamos duas vezes por ano – e o facão e caminhou em direção ao porco, no canto mais esquerdo da mesa, para onde Marcel parecia estar absorto, olhando. Nessa hora, o CD do Dimmu Borgir ainda estava rolando, e agora era "Entrance":

"Another dimension opens for me to see... Heaven sure ain't made for me to be!"

E nesse exato momento Marcel dá um pulo da poltrona, fazendo Leonardo tomar um susto e virar-se para trás, para ver o que ocorreu. Felipe está rindo e gritando "é campeão! É campeão!" na sala, sozinho, enquanto explodem os fogos de artifício na tela, que o deixa mais feliz. Mas o importante, nessa hora, é penetrar na mente de Marcel, e veja só, vocês estão com sorte! Sou um narrador onisciente, seus putos!

Marcel olha para o leitão na mesa, e percebe que a cabeça dele está tremendo, como quando se faz um esforço absurdo. A cabeça do porco começa e levantar-se na mesa, enquanto o corpo continua pesadamente morto, e Marcel começa a ouvir sons como se fossem vindos de um vocalista de goregrind, aqueles mais agudos, vindos todos da boca do leitão, cuja cabeça continuava tremendo em cima da mesa.

"Buuuu buuuuinhiiiiii! Buiiiaaaam! Ruuuuuubuuu Uriiiiiiiibaaambuuuuuaaaaam!"

Marcel apoiou-se nos braços da poltrona e arregalou os olhos. Não estava entendendo o que acontecia diante de seus olhos. As patas dianteiras do leitão levantaram-se, para dar

mais sustento à cabeça. O animal tremia todo seu corpo. O doido de ácido começou a suar muito, mas passou a tentar compreender o que era gritado pelo porco.

"Noooooouuuuu comuuuuuu poooocuuuuuu! Sataaaaaan uuuuuuuu beeeegaaaaaaan!"

As pupilas de Marcel dilatam-se quase preenchendo totalmente a íris, enquanto gotas de suor pingavam da sua testa para a camisa. Abriu a boca, como se isso o fizesse prestar mais atenção. E então, embora o leitão ainda gritasse em gutural defaria, ele compreendeu a mensagem.

"Nãaaaao comaaaa o pooorcoooooo! Satãaaaa éeeee vegaaaaaaan!"

Marcel deu um pulo em cima de Leo, que estava apoiando-se na mesa para não cair, de tanto rir das caras que Marcel fez durante esse tempo. Segurando as mãos do amigo, Marcel, de tão nervoso, jogava perdigotos no rosto de Leo, para avisar.

- Não coma o porco! Satã é vegan!

Felipe ouviu a declaração da sala e começou a gargalhar muito alto, mais do que deveria, embora, convenhamos, é uma frase realmente engraçada de ser ouvida, do nada. Leo, embora assustado com a força usada por Marcel para segurar suas mãos, estava rindo tanto que faltava-lhe ar no momento para resistir à força do amigo. Embora os dois achassem muito engraçado, Marcel estava falando sério, e a expressão no rosto dele passaria isso; mas Leo e Felipe riam tanto que não se atentaram às expressões do amigo, agora, profeta de Satanás.

- Cara... para com essa merda. Isso é bad trip, você tá doidão, cara...

- Hahahahaha! Satã vegan! Hahahaha

Felipe realmente divertia-se, sem preocupações. Leo também estava quase se mijando de rir; o efeito da maconha triplicava a vontade de rir, mas seus pulsos apertados estavam passando a mensagem ao cérebro de que algo ali não estava certo.

Marcel alternava o olhar entre o leitão (que já estava quase totalmente em pé nas quatro patas, ainda tremendo e gritando) e Leo, que estava sem forças, rindo, mas tentando lutar contra a alegria idiota para soltar-se do amigo paranóico. E os efeitos do LSD pareciam estar sendo benéficos, pois Marcel agora compreendia a linguagem de Satã, através do porco na mesa.  

“Maaaateeee! Maaateee! Saaaangueeee!”

Marcel tirou o tridente da mão de Leo, pegou a mesma e segurou-a, pelo pulso, sobre a mesa, e fincou-lhe o talher no meio da mão, com força. Como se fosse um ritual de casamento estranho, uniu a madeira e a carne em um só corpo, recheado de um líquido vermelho viscoso.

- Aaaaaaaaaaaiiiiii filhodaputaaaaaaa! Cetamalucaralhoooouuuuuuuuuu!!!

Ao ouvir o grito, Felipe finalmente conseguiu sair do sofá e correu para a sala de jantar, onde estava toda a comida e os outros dois. Chegou a tempo de ouvir Marcel, numa voz mecânica, sem resquício algum de sentimento.

- Satã é vegan.

E Felipe assistiu, boquiaberto e sem conseguir se mexer, Marcel rasgar o pescoço de Leo com o facão, fazendo jorrar sangue em sua cara (não a sua, nem a do Felipe; a de Marcel). Felipe apenas ouvia o jorro do sangue e o grito engasgado de Leo, mas Marcel ouvia o leitão.

“Sangueeee humaaaaanoooo poooodeeee! Sacrifíiiiiciiiiooo para oooo Paaaaaaai!”

Marcel abriu um sorriso ao ouvir a voz satânica, pegou Leo pelo cabelo e abriu um pouco seu pescoço, direcionando os jatos de sangue para a boca do porco. Felipe sentiu suas pernas bambearem e caiu de joelhos no chão, atraindo a atenção do único amigo vivo. Marcel soltou Leo, que continuou pregado à mesa pelo tridente, mas cuja cabeça ficou pendendo entre o pudim e a farofa, quase soltando do corpo.

- Cara, que isso, calma, calma. Cê só tá doido de doce, cara. É bad trip.

- Não, Felipe. É Satanal! Feliz Satanal! Vamos todos pro inferno!

A boca de Felipe tremia; desistiu de pedir clemência ou tentar convencer o amigo de que era efeito da droga. O sistema nervoso dele passou a preocupar-se apenas em seguir com os olhos o facão. E foi assim que Felipe viu o facão subindo lentamente e descer com uma velocidade que o deixou na dúvida de saber se conseguiria ver sua vida toda antes de morrer. Infelizmente, a preocupação dele com isso foi tanta que ocupou totalmente seu cérebro, não dando tempo de relembrar nenhum momento feliz, nem de sua família ou de seus amigos, ou de músicas, filmes, ou qualquer outra coisa que tenha o marcado pela vida.

Com Felipe jogado no chão com o facão cravado na cabeça, meio na diagonal, Marcel pegou o porco da mesa, já banhado em sangue, e colocou-o ao lado de Felipe, para continuar recebendo sangue de sacrifício humano. Marcel ficou abraçado ao porco, ouvindo o que achava ser uma trilha sonora alegre vinda do inferno para agradecê-lo. Na verdade era só a música do Mario Kart, mas para ele, parecia vir das entranhas do leitão.

E foi assim, abraçado ao porco, entre os dois amigos mortos, que a polícia achou Marcel, no dia de natal. Ao ser perguntado o que havia acontecido, Marcel, ainda sob efeito das drogas, ou sob comando de Satã, repetia alucinadamente frases desconexas, de conteúdo satânico e subversivo, como “Satã é vegan! Romero Britto? Seu cu!”. Ao saber o que fez aos amigos, Marcel tomou coragem e pulou do sexto andar do colégio onde estudava com Leo e Felipe. Embora eles tenham passado o ensino médio todo no quinto andar, pulou do sexto para que nenhum desgraçado achasse que seu suicídio tivesse a ver com “Pais e Filhos”, da Legião Urbana. E ninguém levou a mensagem de Marcel – vinda diretamente do portal LSDéico – a sério; por isso, ainda hoje temos matança de animais sem sentido, e todo o tipo de objeto com a “arte” de Romero Britto estampada.

Boa festa da comilança, e cuidado com quem você chama pra comer porco ou tomar LSD!

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