Ditadura- Adam Mattos
Abri os olhos e imediatamente senti a dor excruciante que sentia antes de apagar. Aos poucos as memórias foram voltando, com isso o desespero crescendo e a esperança se esvaindo. Continuo preso nesse porão sujo e escuro. O que eu fiz para merecer isso? Eles me perguntam um monte de coisas que eu não sei a resposta, e independente do que eu diga, levo choque, soco, paulada… eu não aguento mais. Antes de apagar, um soldado fardado me perguntava quem eram os meus companheiros, com quem eu estava e onde nós nos reuníamos, e eu respondia com total sinceridade que sou um mero professor, nunca fiz mal a ninguém, tenho uma filha pequena e não sei do que ele está falando. Não adiantou, ele se aproximou, pegou minha mão direita e com um alicate grande, arrancou todas as unhas da minha mão. Foi nessa hora que eu apaguei.
***
Eu era professor de história, adorava o que fazia e os alunos também me adoravam. Meu maior prazer era chegar na sala de aula e ser recebido com entusiasmo por eles, apesar de muitos não levarem a matéria a serio, os que levavam faziam todo o esforço valer a pena. Tenho quarenta anos, sou casado há dez e tenho uma filha linda de cinco. Depois do expediente na escola, chego em casa por volta das dezoito horas e mais uma vez sou recebido com entusiasmo, dessa vez pela minha menina, que quando ouve o barulho da porta, larga o que estiver fazendo e corre em minha direção, pula no meu colo e me enche de beijos. Não existe no mundo sensação melhor. Choro ao lembrar e imaginar que nunca mais vou sentir os seus bracinhos em volta do meu pescoço.
Moro em Curitiba e nunca me interessei por política, quer dizer, acompanho o que está acontecendo no país, assisto telejornais, mas nunca militei em nada, sempre procurei permanecer neutro e não me envolver na polarização ideológica que começou há uns anos. Quando os militares tomaram o poder eu fiquei preocupado, claro, como todos que querem um lugar agradável e seguro para viver, mas nunca imaginei que chegaríamos a esse ponto, onde não existe mais democracia, e pessoas são perseguidas apenas por não concordar em como o país está sendo governado. Comecei a ouvir casos de gente desaparecendo sem deixar rastros, pessoas fugindo exiladas para salvar a vida, mas como sempre fiquei quieto e não expus meu descontentamento para ninguém, achei que estivesse seguro. Como estava enganado.
***
O soldado acabou de sair do porão e levou com ele minha sanidade. Há algumas horas ele entrou dizendo:
- E aí verme. Está pronto para falar?
Eu não consegui responder de primeira, estava muito assustado e cansado. Ele então chegou perto e deu um soco na minha boca. Engoli um dente. Com a boca cheia de sangue e muita dor só consegui murmurar que não sabia de nada, que não sabia porque estava ali e nem porque estavam fazendo isso comigo. Ele se aproximou, chegando bem perto do meu ouvido e disse:
- Eu trouxe uma surpresa para você. Vamos ver se isso te ajuda a se lembrar.
Saiu do porão e voltou alguns segundos depois. Quando vi, comecei a gritar e chorar compulsivamente. Ele trazia, segurando pela mão, minha filha, que ao me ver amarrado, machucado e coberto de sangue, começou a chorar também e tentou correr em minha direção, mas o militar segurou mais forte e não a deixou se mexer. Ele pegou a minha princezinha, tirou toda a sua roupa e a amarrou em uma cadeira na minha frente. Ela chorava muito e não entendia o que acontecia. Ele praticou todos os tipos de torturas em mim enquanto ela assistia e implorava para que o homem parasse de machucar o pai dela. Ele enfiou agulhas embaixo das minha unhas, jogou agua gelada e quente em meu corpo, me afogou com pano molhado, colocou saco plástico na minha cabeça até eu desmaiar, e quando isso acontecia, me dava choques para que eu acordasse. Depois disso tudo, pegou uma bateria de carro e com os cabos desencapados deu choques nas genitálias da minha menininha. Em meio a urros dela e meus, ela acabou desmaiando. Ele a desamarrou e saiu do porão com ela desacordada em seus braços, me deixando física e emocionalmente destruído. Fechei os olhos e chorei.
Fiquei no escuro absoluto pelo que imagino terem sido dias, já faz tempo que eu perdi a noção do tempo. Pode ser que eu tenha ficado nesse porão por semanas ou meses, não tenho como saber. No começo eu tentava distinguir os dias com as vindas dos meus torturadores, achava que vinham duas vezes por dia, mas as visitas passaram a ser cada vez mais inconstantes. As vezes parecia que vinham novamente depois de apenas alguns minutos, outras vezes eu achava que já haviam passado dias desde a ultima seção de tortura. Água e comida era coisa rara, já estava em um estado de tamanha fraqueza que quando me davam um pedaço de pão, eu vomitava em seguida. A vantagem de não ter comida é que quase não precisava mais defecar, pois quando ainda precisava, tinha que fazer ali no chão mesmo, e as fezes ficavam em baixo de mim, apodrecendo e me torturando com o cheiro. Mas apesar disso tudo, não penso em outra coisa, se não a minha filha sendo eletrocutada e levada nos braços daquele monstro. A angustia de não saber o que aconteceu com ela, e nem se continua viva é pior do que qualquer porrada, afogamento ou objetos me cortando ou furando. Ouço um barulho de passos se aproximando da porta e me encolho todo, já prevendo mais humilhação e dor.
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Um dia, eu estava dando aula para uma turma que se preparava para ingressar na faculdade. A matéria era guerra fria, e eu explicava aos meus alunos sobre o motivo que levou à disputa, Estados Unidos e União Soviética pela soberania política, econômica e militar ao redor do mundo, quando um aluno ergue a mão e diz:
- Professor, por quê todo mundo não se une e mata de vez esses comunistas filhos da puta?
Eu respondi:
- Veja, a solução não é guerra armada e mortes, todos devem respeitas as posições políticas de todos, mesmo que estas sejam diferentes das nossas. É errado pensar em matar quem pensa diferente de nós. Por exemplo, qual é a sua religião?
- Católica
- Você sabia que em algumas partes do mundo você seria perseguido e talvez até morto, apenas pela sua religião?
- Mas aí é diferente professor, minha religião não faz mal a ninguém, já os comunistas matam pessoas e querem impor isso no mundo todo, alem de comerem crianças.
- Olha, em primeiro lugar, você precisa estudar mais sobre o assunto para não ficar falando coisas que são boatos, espalhados exatamente por quem está contra eles, com a intenção de manipular a opinião pública para aí sim, quem sabe, legitimar um ataque contra eles. Segundo, você sabia, que em muitos lugares do mundo os próprios católicos já perseguiram quem era de religião diferente? Inclusive matando e torturando, assim como em uma ditadura.
- Você é um comunista professor, logo logo vai estar em uma vala também, que é o lugar dessa gente.
Fiquei perplexo, sem saber o que responder, apenas olhei aquele aluno, cheio de ódio e intolerância e temi pelo seu futuro, na verdade, nem tanto pelo seu, mas pelo das pessoas que o rodearem. Calmamente o mandei para a diretoria, enquanto ia ele continuava me ameaçando.
Quando cheguei em casa, contei para a minha esposa o ocorrido e ela me fez prometer tentar não abordar mais esses assuntos, pois agora o nosso país passava por um período de grande incerteza, desde que o congresso foi destituído e ao que tudo indicava estávamos entrando em um período que a democracia seria deixada de lado. Prometi para ela e disse que iria deitar um pouco pois não estava me sentindo bem, lhe dei um beijo e fui para o quarto, deitei na cama sem tirar as roupas e comecei a pensar.
Por quê o mundo anda tão intolerante? Porque essa fixação dos Estados Unidos em vencer o Comunismo? É claro que se pensarmos apenas de forma prática, o comunismo causa medo em países puramente capitalistas, mas será que é tão ruim assim? Marx defendia uma luta de classes para que diminuísse a desigualdade entre a burguesia e o proletariado, o que tem de errado nisso? Ao mesmo tempo, a liberdade econômica capitalista dá chances a pessoas enriquecerem, não sei se isso é justo, mas parece ser o que a maioria prefere. Eu não sei o que é melhor, só sei que nunca mais me meterei em discussões a esse respeito e quero distancia de política. Vou viver a minha vida tranquilo, cuidar da minha família e tentar ser feliz, independente dos rumos que o país tomar. Toca a campainha. Eu me levanto e vou ver quem está na porta, quando chego na sala, vejo três homens fortemente armados me esperando. Minha esposa estava em um canto assustada. Eu não tive tempo de me despedir dela e nem da minha filha, pois quando me viram, voaram em minha direção e me arrastaram para um carro estacionado em frente da minha casa, enquanto minha mulher e filha gritavam da porta por socorro, quando percebi, tinha um capuz cobrindo o meu rosto e meus braços estavam algemados para trás. Começava aí o meu inferno.
***
A porta se abriu e entrou um homem que eu até então não tinha visto, ele carregava uma maleta preta, a colocou em cima de uma mesa, abriu calmamente e tirou de lá uma furadeira. Olhou para mim e disse:
- Todo mundo aqui já está cansado de você, e eu acho que você também está cansado não?
- Cade a minha filha? O que vocês fizeram com ela?
- Isso vai depender da nossa conversa. Você está ponto para começar a falar?
- Eu… Eu já disse, não sei de nada, nunca me encontrei com ninguém, não gosto de política, não sou comunista, sou professor de…
- História, eu sei. Tudo isso eu já sei, mas veja bem, nós sabemos que você gosta de ensinar seus alunos que comunismo é legal, que houve um golpe e que o governo é usurpador e não deveria estar no poder, e por experiencia própria, esse tipo de “gente”(ele fez aspas com as mãos) não fica só na conversa, sempre se unem a outros agitadores terroristas para fazer algazarra e atrapalhar a nossa vida, então começa a falar agora, ou alem de eu furar a sua cabeça com esse brinquedinho aqui, vou deixar os rapazes se divertirem com a sua filhinha. Tem uns aqui que adoram meninas bem novinhas como ela.
- Pelo amor de Deus, eu falo tudo o que você quiser saber, eu me encontrava com alguns outros comunistas num bar no centro que não me lembro o nome, a gente conversava sobre política, e em como iriamos começar alguma revolução, mas não sei o nome de nenhum deles, nós só nos tratávamos por codinomes. Pelo amor de Deus, não faça nada com a minha filha, eu disse tudo o que sei, mas se me soltar eu descubro mais e trago pra você tudo o que você quiser, tenha misericórdia.
- Eu não acredito em você, acho que está mentindo. Você é só um professor de história que fala demais, só isso.
Ele se aproximou de mim com a furadeira ligada, e momentos antes de estraçalhar o meu cérebro com a broca afiada, só consegui pensar que estávamos vivendo novamente um período de ditadura militar, mais de seis décadas depois do golpe de 1964.
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