O Sangue das Estrelas- E. B. toniolli
Nunca esquecerei a noite em que vi a aurora boreal dançando como um véu espectral sobre as gélidas terras do Ártico. Eu, um simples pesquisador da Universidade de Arkham, fora enviado a uma expedição sem precedentes, financiada por uma obscura sociedade esotérica que buscava respostas para fenômenos inexplicáveis. O destino era um ponto remoto no Polo Norte, onde cientistas de gerações anteriores haviam registrado estranhas alterações no magnetismo terrestre, mas de onde jamais retornaram com
sanidade intacta.
A equipe era composta por indivíduos que, como eu, tinham pouco a perder. Cartwright, um geólogo desacreditado por suas teorias sobre civilizações pré-humanas, via na missão sua última chance de redenção. Lane, uma criptógrafa, fugia de uma acusação de fraude acadêmica e parecia estar sempre sussurrando para si mesma em um idioma que ninguém entendia. Mercer, um ex-militar, fora dispensado por razões não esclarecidas, mas sua frieza e olhar vazio sugeriam um passado repleto de sombras. E, por fim, Tillinghast, um médico legista obcecado pelo conceito de vida além da morte, cuja presença causava um desconforto difícil de definir. Não éramos heróis. Éramos párias, escolhidos porque ninguém sentiria nossa falta caso falhássemos. Ao desembarcarmos no vasto deserto branco, um presságio sinistro se abateu sobre a equipe. O rádio captava apenas estática, e as bússolas giravam em frenesi, como se a própria Terra negasse sua orientação. Mercer, instintivamente, verificava sua arma de serviço com uma frequência que beirava o obsessivo. Contudo, foi quando as auroras se ergueram ao céu que compreendemos o erro de nossa jornada. Elas não eram meros reflexos de partículas solares — seus movimentos eram organizados, deliberados, como
se algo por trás daquele espetáculo iridescente estivesse observando e respondendo à nossa presença.
Na segunda noite, enquanto escavávamos o solo congelado, encontramos indícios de estruturas sob o gelo. Eram monólitos escuros, cobertos de inscrições que nenhum idioma humano poderia decifrar. Pareciam se mover, como se os olhos desfocados os fizessem vibrar em frequências invisíveis. Tillinghast, fascinado, jurou que as marcas tinham um padrão biológico, como se fossem vestígios de um organismo adormecido.
Cartwright, cético, insistiu em prosseguir. Ele acreditava tratar-se de uma civilização perdida, talvez os últimos vestígios de uma raça esquecida, soterrada há milênios pelo tempo e pelo gelo. Lane apenas anotava freneticamente, murmurando palavras que ninguém entendia. Quando questionada, limitava-se a sorrir e a continuar escrevendo, como se estivesse transcrevendo mensagens que apenas ela conseguia ouvir.
Foi naquela mesma madrugada que os gritos começaram. Mercer, o mais resistente entre nós, acordou urrando e apontando para o céu. Suas pupilas estavam dilatadas, e seu corpo tremia de maneira incontrolável. “Eles estão vivos!”, ele murmurava, enquanto o próprio ar ao nosso redor parecia vibrar com uma energia insuportável. Lane, ao tentar acalmá-lo, começou a murmurar palavras numa língua estranha, como se estivesse repetindo algo ouvido em sonhos. Tillinghast observava tudo em êxtase, como se testemunhasse a revelação final que tanto buscava. Cartwright, por sua vez, tentava esconder o pavor atrás de um falso ceticismo, mas sua respiração acelerada e o suor frio
em sua testa o denunciavam.
Naquela noite, sonhei com Aetheris. Não era um ser, nem um deus como os humanos compreendem, mas algo maior, incomensurável. Uma entidade que não nascia nem morria, mas se dissolvia pelo cosmos, suas fibras cósmicas formando mundos, sua essência infundindo-se na matéria. A Terra era um de seus legados, e o que chamávamos de auroras boreais eram os últimos rastros de sua presença, lampejos de um sangue estelar que pulsava nos céus desde tempos imemoriais. Mas algo estava errado. O sangue estava se agitando. Algo estava despertando.
Despertei suando frio, apenas para perceber que Cartwright desaparecera. Pegadas levavam até um rasgo no gelo, uma fenda que se abria para um abismo insondável. Lá embaixo, algo se mexia, uma luz pulsante que não deveria existir sob a crosta terrestre.
Era uma cor que não consigo nomear, uma vibração que minha mente humana não conseguia suportar. Cartwright estava lá, ou o que restara dele. Sua forma se desfazia em partículas cintilantes, seu corpo sendo absorvido pela ressonância daquilo que vivia abaixo do gelo.
Foi quando compreendi: Aetheris estava desperto. O sangue que dera origem à Terra, que formara oceanos e atmosferas, estava vivo e consciente. Ele nos via como intrusos em seu corpo adormecido. E agora, o equilíbrio estava quebrado.
Lane começou a rir descontroladamente, seu rosto iluminado pela luz da aurora, que parecia respondê-la. Ela não estava mais conosco — seus olhos refletiam o céu em espirais de cores impossíveis. Mercer tentou fugir, mas antes que desse um único passo, seu corpo foi tomado por um espasmo convulsivo e ele caiu de joelhos, enquanto a luz ao nosso redor parecia devorá-lo. Tillinghast, em um ato de pura reverência, ajoelhou-se diante do abismo e começou a entoar cânticos em uma língua esquecida. Ele os conhecia. Ele sempre os conheceu.
Eu corri. Corri sem olhar para trás. Não sei como consegui escapar, mas a aurora boreal tornou-se um turbilhão de sombras e cores, um grito silencioso que preenchia os céus.
A expedição foi dada como fracassada, e os poucos que retornaram comigo jamais
ousaram falar do que viram. Hoje, anos depois, observo as luzes do norte e percebo algo diferente nelas — um padrão, uma mensagem. Sei que Aetheris não esqueceu, e seu despertar ainda não está completo.
A aurora boreal não é apenas um fenômeno natural. É o último suspiro de algo muito mais antigo que nós. Algo que sangra, sonha… e espera.
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