Wanessa Araújo- Eucaristia
É meio dia, o sol desempenha a função de carrasco açoitando o asfalto e destruindo qualquer fator de proteção solar.
Dalia caminha com dificuldade pelo cenário de destroços, desvia de objetos aleatórios que não combinam com o espaço em que estão inseridos como em uma pintura de Dalí.
Numa tentativa de amenizar os raios nocivos da estrela mãe, camadas de tecido morfado improvisam um tipo de proteção para a cabeça, como um turbante afro.
Teatros, bares, restaurantes, motéis...
Vazios. Saqueados pela população antes da evacuação.
Enquanto caminha a memória rebobina as ultimas lembranças da civilização e as imagens surgem numa resolução de fita VHS: cadáveres amontoados nas portas de hospitais, fome em escala mundial. Desespero.
A ordem impressa na bandeira nacional totalmente perturbada por uma ameaça invisível em forma de peste. Uma releitura cubista do diabo de reproduzir a propria versão da humanidade onde as pessoas batem continencia para figuras grotescas e gritam (enquanto o ar tóxico não dilacera seus pulmões) o novo slogan do país: "Hail pandemônio: Caos acima de tudo, pânico na vida de todos."
O vento assobia a marcha fúnebre enquanto bate nas janelas das casas vazias e traz os pensamentos de Dalia de volta para o presente, onde o chorume escorre dos morros feitos de lixo como se fosse a bile escapando pelos buracos de um corpo putrefato.
A cidade de São Luís está morta.
O silencio doloroso a acompanha pela cidade que impõe sobre o caos de destroços o peso de sua presença tumular.
Dália não sente a dor da perda. Sua alma secou pra todo choro assim como as nascentes poluídas dos rios secaram para a sede dos sobreviventes.
Ela segue a passos lentos, retorce o pescoço e seus olhos alcançam um outdoor que diz:
"Jesus está voltando", em letras vermelhas.
Olha para o céu, nada, nem nuvens nem pássaros, apenas o azul infinito contrastando com a profecia do outdoor e pontuando o vazio de sua existência.
Seus ombros expostos padecem sob a tortura do sol com queimaduras de segundo e terceiro grau, retorcendo a pele e exibindo lascas de gordura amarela onde grudam fiapos de tecido que desprendem de sua roupa.
Seus olhos negros como duas sementes de guaraná varrem o perímetro e pousam sobre uma das muitas construções depredadas, a antiga linha de supermercados São Marcos.
Dalia rasteja sobre o asfalto fervente rumo à promessa de alívio. Desliza o corpo franzino pelo espaço vago entre duas tábuas usadas para isolar as portas do supermercado e caminha em direção a penumbra que nocauteia a visão.
No interior do supermercado azulejos sujos revestem as paredes aquecidas pelo mormaço e aprisionam na atmosfera abafada um cheiro metálico que se desprende das prateleiras enferrujadas.
Ela caminha pelo chão fuliginoso guiada apenas pelos raios solares que atravessam os buracos no teto, observando ratos e baratas labinrinteando por entre as carinhas felizes das embalagens de batatas pringles espalhadas pelos corredores de gôndolas vazias.
Os olhos lambem o cenário empoeirado, as pupilas dilatadas com o esforço para enxergar no lusco-fusco até que as retinas captam movimento.
A cena é processada pela parte occiptal do cérebro e a imagem é convertida em uma série de informações que percorrem como ondas elétricas por suas terminações nervosas.
Os músculos de seu rosto enrijecem, a boca seca e toda a sua atenção é direcionada para a pele alva como marfim de um corpo estendido no chão.
Um feixe de luz do sol acentua a curva perfeita dos quadris delicados salpicados de sardas marrons que se estendem até os pequenos seios de auréolas rosadas.
Dalia observa cada detalhe da Vênus esculpida à mão a procura de qualquer sinal de vida. Seus olhos param no dorso da garota, onde o tórax ondula num ínfimo movimento de respiração pausando por longos segundos, estremecendo levemente.
Lampejos de uma vida passada vem à tona e ela reconhece o padrão daqueles movimentos, sabe exatamente quando a vida se despede para dar lugar ao vazio da morte.
Observa o corpo a sua frente com a sabedoria secular dos caçadores de sua família aflorando em sua pele, como quando nas temporadas de caça no interior do Maranhão.
Dalia. Excelente em tirar vidas mas não é uma vilã como os criminosos saídos da mente de tarantino. Assassina por necessidade, competente em seu ofício sem nunca usar efeitos especiais ou dublês, apenas miolos de veados e pacas espatifados com golpes certeiros.
A jovem no chão agora jaz com o olhar perdido, enxergando um horizonte invisível além de Dalia, vendo coisas que só os mortos vêem.
Linda como a lua.
Um arrepio gelado percorre sua espinha ao perceber que o olhar da jovem morta a provoca.
Não importa se o segredo do lado escuro daquele corpo quase celeste é que não comporta mais vida.
O perfume da morte alça voo, um cheiro bom, rodopiando e permanecendo suspenso no ar até ser filtrado pelas narinas dilatadas de Dalia.
Uma moscas com asas verde-neon pousa em um dos olhos da garota, olhos de um azul
intenso com manchas de sangue vivo nos cantos como se chorasse sangue.
"Jesus está voltando"
A falsa profecia do outdoor se manifesta em toda a sua complexidade. A ausência de um Deus no azul do céu tal qual a ausência de vida nos olhos da garota.
Do estômago a fome grita e rasga o silêncio com um som trovejante. Não a fome dos comerciais de barra de cereal; fome de verdade, fome que te obriga a ter um tipo de criatividade maligna para bolar um plano de sobrevivência para cada dia da semana.
O paladar permanece estranhamente fixo ao perfume que o corpo ainda quente exala.
A sequência de notas olfativas é absorvida não só por um sentido bruto como o olfato mas pelos anseios mais íntimos de uma mulher devastada.
Nao da pra imaginar o saber empírico que cabe na mente de uma pessoa traumatizada, alguém que conviveu tempo de mais com a fome carrega um universo sombrio de possibilidades.
E nesse momento há uma guerra em sua mente, valores cristãos, sua fé, brigando como o animal selvagem que existe dentro das várias camadas de evolução como a última peça de uma boneca russa.
O corpo estremece e assim como tudo no fim dos tempos, a carne vence então os joelhos dobram.
Toda sua fé transmuta-se em algo nefasto e violento.
"E, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim."
Dalia enterra os dentes curtos na garota, o ruído viscoso de carne sendo mastigada reverbera pelas paredes do supermercado enquanto a fome consome toda a sua dignidade.
Escrava do cristianismo outrora, agora escrava da vida real, come pois, ou morre.
Esperando pelo trivial Dalia não sabe se portar diante do incomensurável; o sabor da carne humana se expressa em sua própria linguagem, faz com que todas as formas de discurso sejam menos válidas.
Ela dilacera a carne com facilidade como se toda a sua vida não passasse de um ensaio para esse momento, arranca com mordidas a pele da carne. Separa a carne dos ossos.
Alguns nacos de carne se movem em sua boca como tentáculos de polvo, provocando erupções de endorfina em seu corpo.
O céu da boca do inferno em festa.
"... em seguida tomou o cálice, deu graças e o entregou aos seus discípulos, proclamando: 'bebei dele todos vós. Pois este é o meu sangue."
Ela enche as mãos com tripas e pedacinhos de carne triturada do buraco que se formou na barriga da jovem, levando tudo a boca, lambendo o sangue, sugando tudo o quanto pode entre gemidos de satisfação.
Os olhos de Dalia projetam-se para frente, a beira das órbitas como que preparados para saltar no lago de sangue e vísceras a sua frente.
A Santa Eucaristia ao pé da letra. Redimindo o pecado de viver sob o domínio de superstições.
Aos poucos, a excitação dissolve-se ou melhor, transmuta-se em algo menos urgente, menos volátil.
Ela levanta ainda tonta deixando os ossos que sobraram de sua refeição ecambaleia em direção à saída. Sente um cheiro familiar, nostálgico.
Incenso.
Mas não cheira mais aos domingos na igreja, agora a imagem do padre defumando o altar com incenso tornara-se sensual de mais, lascivo de mais.
Essa luxúria a domina e sacode seu corpo para fora do supermercado.
No horizonte o sol se despede daquele lado do hemisfério, deixando para trás uma mancha avermelhada que lembra um rastro de sangue.
Um sorriso lateral surge em sua boca quando ela percebe que as cores do velho mundo mostram-se diferentes agora, tudo remetendo ao novo sagrado. Mas velhos hábitos nunca morrem e a sede pós refeição pede uma cerveja...
A ideia se dissipa em sua mente. Não restou nada. Ela limpa as mãos sujas de sangue no jeans puído e continua a caminhada.
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