As Gaiolas- David Leite
Era sua missão acolher a alma dos sonhadores. Talvez fosse um anjo, como muitos o nomeava em suas orações a pedir descanso, mas lhe parecia um rótulo impróprio. Lembrava das hierarquias celestes, das hostes de que uma vez ouviu. No entanto, no plano árido que solitariamente dominava, jamais alguém o visitou. Na eternidade em que exercia seu ofício, nunca ninguém lhe instruiu. Ainda menos o condecorou com asas, aureola e vestes níveas, ou qualquer outro artificio que sugerisse algo mais próxima do que imaginava a figura angélica.
Na realidade, sequer se reconhecia. Não era capaz de distinguir em si, forma diáfana, algo ou alguém, e se não fosse uma latente consciência sequer poderia estar seguro do próprio existir seu. No entanto, sabia que ali estava, sabia que existia, como alguma entidade incorpórea, naquele plano límbico.
Sabia também das imagens dos anjos. Pois era seu papel, ali, estar lá para os sonhadores do duro plano da realidade. Ali, exercia a atividade de vê-los em berço de ilusão. Neste terreno obscuro onde tudo o que o sonhador via e sentia enquanto desperto tomava a eloquência caótica onírica. Ele, como observador impassível, investigava as formas e cores e nomes e estórias de quem entrasse em seus domínios. Não poderia se considerar um protetor. Não guardava ou protegia os não despertos de nada que ali surgia. Era um de plano de criação e caos. Não caberia a ele protege-las. O sono dos justos, que muitos falam, a fantasia protegida dos bons... Estava a eternidade ali a desempenhar uma função qualquer, mas poderia afirmar que esse enredo também era uma falácia. O viver do sonhar era árduo para todos. Crentes, incrédulos, bons e maus. Isso ele podia afirmar, e nada fazer.
Aliás, nada fazia. As janelas por onde vislumbrava o idílio alheio espocavam no ar, por todoo lado. Sem qualquer intervenção sua. Resplandecentes espelhos de molduras nebulosas que surgiam a cada segundo. Cavidades brilhosas no breu, onde filmes incoerentes eram transmitidos.
Seu papel ali era simples....Observar. Fez isso por quanto tempo que não poderia dizer.
Conhecia o que era tempo através dos sonhadores, mas para ele era outra coisa desconhecida como o anjo que pensou ser antes.
Dentro de seu âmago, então, nova inquietação surgia. O seu papel. Nada fazia. Por pouco sabia que existia. O que fazia ali, então? Apenas observava?
Colheu então, de uma das montras de devaneios, a figura de um anfitrião. Porta-se como tal, então. Começa a saudar com um apêndice imaginário todo sonhar que surge. Tenta recebe-los com toda a etiqueta e maneirismos do bom anfitrião, tal como observara nas imagens dos bons sonho, onde banquetes e festejos eram apreciados.
Não pareceu funcionar. Sua presença não parecia ser notada por nenhum dos divagantes, tampouco seria a mudança de atitudes com ele.
Frustra-se por um momento, recosta o que imaginava ser seu corpo em um dos espelhos oníricos e sente, por um momento, penetra-lo. Observa novamente e percebe que perturbava ali o encaminhar da cena. Ao recostar no espelho, dentro do cenário, cai de sobre uma cômoda o vaso de flores que inadvertidamente tocou. O protagonista do sonho desperta com o quebrar do vidro, então segue o sonho por outro rumo, talvez...
Percebeu então, depois do indefinido tempo que ali estava, que podia através daquela janela projetar sua presença e transformar aquilo que via, pelo menos um pouco, em novos enredos... Um sutil empurrar, uma mudança pequena de objeto próximo, qualquer recatada atitude sua podia tornar aquele sonho um pouco diferente.
Brincou com isso por um tempo. Empurrava vasos, trocava itens de lugar, acionava
equipamentos e o sonhador sempre parecia surpreso com aquilo. Fez o papel de poltergeist até entediar-se dele e voltar para a posição inicial.
Retornando ao ócio anterior, novas dúvidas surgem sobre sua cabeça. Ele não podia sonhar.
Sequer podia dormir e, caso dormisse, sonharia o que, exatamente? Naquele limbo em que vivia, inerte, vazio, não havia experiência que pudesse compor sua própria obra nos sonhos.
Apenas o passivo olhar do sonho alheio era insuficiente. Era pouca vida, minguada demais para ser fonte de algo melhor do que já viu ali em todos os espelhos.
Tenta entrar novamente em um dos espelhos. Dessa vez, atravessa por completo sua presença para o pequeno quarto onde o sonho se desenrolava. Deitado na cama, o sonhador sonhava que dormia. Tantas aventuras, mundos e exuberância nos sonhos de outros, este parece que tinha enormes reservas em algo extravagante. O pequeno aposento que ocupava era mofado, de precárias condições. Pouca e desgastada mobília. O sonhador, então, pareceu sentir que
alguém ocupava o quarto com ele. Descobrindo a cabeça, observa, a luz da vela na cômoda a presença estranha. Atônito.
Ele, a presença sem nome, se espanta ao perceber que o sonhador o via. Um espelho quebrado jogado no canto da parede então revela à presença algo inédito. Era ele uma símile do sonhador. Idêntico.
O sonhador ameaça gritar, mas sua voz não sai, como em todo pesadelo
A presença, ainda contemplando o fato de ter tomado corpo e existir ao atravessar, olha para as próprias mãos. Cerra os punhos, e toca a própria face, fascinado. Por longos minutos encara-se no espelho quebrado, movendo os músculos da face em todos as feições que antes vira.
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O sonhador, dono original daquela forma confiscada, levanta-se abruptamente. Tenta buscar com as mão por algo para se defender. Não havia nada próximo a ele que pudesse servir de arma. O transe da presença se quebra com a movimentação. Olha para o sonhador. O que faria agora? Estava dentro do sonho de um visitante de seus reinos, e tomou, por incomum ocasião, a pele deste. Não “simplesmente existia” agora. Havia algo de vivo crepitando em
sua essência.
Assustado cada vez mais, sem conseguir soltar nota da garganta para gritar,o sonhador se encolhe na parede. A presença, então, decide rápido. Iria alimentar aquele sopro de vida dentro de si. Tomaria aquela vida.
Num movimento agora de mãos formadas, constrói no ar uma grande gaiola dourada. Mesmo com a batalha do sonhador, consegue arrasta-lo para dentro dela com facilidade. A ergue como uma pluma e, mirando o outro lado do espelho pelo qual viu anteriormente aquele ingênuo sonho. Arremessa a gaiola, que prespassou o portal e vagou para o limbo onde antes ele estava.
Agora ele era o sonhador. E, em momentos, o desperto para o mundo.
Um apagar repentino de luzes....um estampido...e ele desperta sobressaltado.
Estava acordado, então.
No mesmo quarto do sonho. Nada mudou. O cubículo estreito e pobre. Sentia com mais firmeza o acolchoado em que estava deitado. Olha novamente para as mãos. Ao aperta-las, um fluxo de sangue é sensível subindo pelos braços até o punho. Sentia seu corpo. Sentia vida.
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Levantou-se com entusiasmo. Aproveitaria agora para sentir o banquetear vivo, a exuberância que via povoando os sonhos, os sentimentos plenos e confortáveis que tanto o encantavam no pensamento alheio.
Abre a porta de tapume do aposento, que dava para um corredor longo, também ruinoso, com dezenas de outras portas castigadas como a sua.
Não parecia em nada os cenários suntuosos que viu.
Passos no corredor mal iluminado chamam sua atenção.
- E ae, Carlos. Como vai, amizade?
Um homem sem camisa, repleto de tatuagens no corpo, saúda ele com certo escárnio na voz.
- Vou bem. Obrigado. – Ele responde, em dúvida de como deveria se portar.
- Então, né, truta? – Continua o homem – Três meses de aluguel vencido, certo?
Aluguel? Não entendia bem o que era isso. Jamais viu alguém, em seu conforto, colocar esse nome dentro de seus sonhos.
- Eu não.... – Hesita em responder
- É muito dinheiro que tu deve para mim, chapa...
Dinheiro? Procura nos bolsos por algo parecido. Via dinheiro em sonhos, montes e montes.
No bolso, apenas uma nota amassada com o numeral 2 e algumas moedas.
Oferta para o homem mal-humorado o que apanhou com prontidão
O homem joga o pescoço para trás com uma gargalhada indignada.
- HAHAHA....vc tá tirando uma com minha cara, seu palhaço?
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Como o homem parecia cada vez mais hostil, ele decide que deveria agir de algum modo.
Defender aquela vida que acabou de tomar. Decide que deveria ataca-lo com a firmeza que tinha agora. Subjuga-lo como muitos sonhadores o haviam demonstrado em seus vitoriosos e heroicos idílios.
Com o punho cerrado, num frenesi para se defender, desfere um direto na face do homem. O golpe foi o mais violento que pode dar, mas aquela face de pedra, já castigada do homem, apenas sofre um espasmo e um corte no lábio.
- AGORA TU PASSOU DOS LIMITES, MANÉ! – Berra o homem tatuado.
Ele sente o sangue descer para suas pernas. Repentinamento, o calafrio, medo, desespero se irmanam dentro de sua cabeça. Estava não num sonho, mas num pesadelo. O corpo então responde por ele e se põe em corrida.
O homem tatuado o persegue. Pelos corredores fétidos e cheios de umidade. Alguns quartos abertos revelavam pessoas castigadas, usando todo tipo de drogas, vendo a confusão que se formou, enquanto em outros algumas pessoas humildes batiam a porta para se protegerem do caos. Como nos sopores tortuosos dos entorpecidos que entravam em seu reino de antes, era isso que ele sentia enquanto cortava os corredores labirínticos do edifício, descia escadas em
pulo, ainda sendo perseguido pelo homem tatuado.
Ao saltar um lance de escadas destruídas, dá de frente para um tapume impedindo nova decida. Num beco sem saída, desesperado, tenta chutar o tapume para abrir caminho, sem sucesso. O homem tatuado desce as escadas calmamente então, enquanto puxa uma faca do bolso.
- Ora, passarinho quer voar para onde? – diz, com desdém – Essa aqui é MINHA gaiola,
Carlos....
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Ele se recosta no tapume, em desespero. O homem tatuado se aproxima vagarosamente, pronto a ataca-lo.
Uma explosão, então.
Alguns andares acima, faz tremer o edifício arruinado inteiro.
O incêndio se alastra rapidamente. A queda dos escombros é ainda mais rápida. Ele, o homem tatuado, os outros residentes, todos presos naquela gaiola, que se desfazia.
Em outro lugar, na vastidão inerte do limbo, outra gaiola se desfazia, e espelhos de molduras nebulosas surgiam e evanesciam. A presença, libertada, sequer se reconhecia, exceto pela sua consciência de existir...
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