Violência- Wanessa Araújo

 




Geralmente o que dizem sobre a sensação do cano de uma arma encostando na pele é que é gelado; no sol a pino, sertão do Maranhão, talvez essa descrição seja equivocada.

Maldito sol, maldito verão infinito. Não bastasse o ferro quente quase em ebulição queimando a pele de minha nuca, minhas mãos foram presas de qualquer jeito, meus dedos estão tortos sob os nós da corda e grudam com o sangue seco das feridas em meus pulsos.

O horizonte tremula com a temperatura extrema, tudo dói e eu só consigo pensar em como eu queria um cigarro.

"Nele temos a redenção por meio de seu sangue, o perdão dos pecados, de acordo com as riquezas da graça de Deus"...

Dois sujeitos me encaram com olhares impacientes, murmuram algo ininteligível e um deles cospe no chão.

Um sorriso irreprimivel escorre dos meus lábios.

O reverendo e sua ladainha, os dois boca sujas a minha frente, o maldito carrasco e acabou.

Ninguém veio me ver.

Não que eu esperasse uma platéia... Mentira! Esperava sim.

Eu sou a porra de um condenado ou o que ?! As pessoas desta geração são extremamente insuportáveis, cadê a sede por sangue ? A curiosidade capaz de matar mil gatos de uma vez só deu lugar ao ócio, preguiça mesmo.

Quando criança, ensaiei este momento de infinitas formas. Por várias vezes me vi flertando pela última vez com alguma prostituta ou cuspindo na cara de algum conservador. Mas não há ninguém aqui.

O piso de tábuas range sob meus pés enquanto caminho rumo ao meu destino fatal. A corda.

A corda...

Acorda porra!

-Cacete bicho, mais uma dessa e cê empacota...

Com o coração aos pulos, levanto de uma carcaça úmida e fétida do que parece um dia já ter sido um sofá. Meu estômago dói, meu corpo inteiro treme.

O céu está coberto por uma lona azul imunda e o cheiro nauseante de vômito e fezes injeta adrenalina por minhas narinas.

Há um latido intermitente, choro de bebê, murmúrios e o que parece ser uma briga distante.

 Se morri e aqui é o inferno, ou o clima maranhense serviu de treinamento ou aqui não é tão quente como dizem; pelo contrário, parece até...

Frio.

Com dificuldade pois minhas pernas ainda tremem, saio da barraca de lona. Meus olhos se ajustam á luz rapidamente, o céu está pálido com nuvens cinzentas.

Uma mulher grávida passa aos tropeços a minha frente, é tão magra que os ossos de sua face estão todos saltados.

A faísca nas mãos da mulher grávida me faz lembrar de onde estou, ela tenta acender um cigarro molhado e se junta a outras duas mulheres em um canto úmido.

Olho em volta, dezenas de pessoas sob as mesmas condições. Avenida Rio Branco da grande São Paulo, Cracolândia, lotada de corpos secos, vagando desorientados como se a morte não fosse uma ameaça constante.

Sinto um buraco atravessar meu estômago de uma ponta a outra, seria fome ou ânsia de vômito?

Um casal sorri enquanto caminha a poucos passos do mangue de corpos da Cracolândia. Seus dentes cintilam em um tom de branco ofensivo e seus pulsos e pescoços ostentam pequenos tesouros reluzentes.

Aqui é onde a selva se rebela e toda independência é conquistada a base de violência.

Meus pés se movem sozinhos, quase contra a minha vontade. Não há um roteiro, essas coisas não são planejadas.

O que dita a forma de agir de um viciado é o vício. Selvagem. Inconsequente.

Avanço para o casal e antes que eles percebam, meus dedos encaixam perfeitamente na pequena fenda entre o pulso e o relógio da mulher.

- PEGA LADRÃO!

Alvoroço, gritaria, um único estampido e silêncio.

Como uma tv antiga com defeito, meus ouvidos são inundados por estática, um por vez.

Em minhas mãos, fluido e constante, vermelho e quente. Jorrando pela cascata aberta no peito, meu sangue escorre de meu corpo.

Sinto-me finalmente inundado por algo que preenche o vazio da minha existência.

Estar morrendo é sentir algo, mas tão rápido quanto veio, se vai.

ESSA NOITE NO NOTICIARIO, MAIS UM CASAL VITIMA DA VIOLENIA NA TERRA DA GAROA

 

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