In Komodo- Alan Cassol

 




 



 

Naquela circunstância, eu estava em alguma ilha da Indonésia. Tentei espatular resquícios que pudessem esclarecer o porquê da minha presença por ali, mas o que consigo descrever é do agora pra frente. Diante de dragões-de-komodo, bateu uma pavorosa cócega nos ossos: eu não poderia sair dessa. Deitei-me.

 

Uma metamorfose aconteceu: de repente, eu era um dragão-de-komodo. Fui guiado até o limite da vegetação alta; dali pra frente predominava areia fina de praia. Pequenos manguezais eram percebidos aos lados.

 

Havia seis búfalos dando sopa. Logo percebi que se tratava de uma espécie de ritual de iniciação: a missão era morder o tendão de um deles. Embora o corpo fosse de dragão-de-komodo, as faculdades mentais ainda eram minhas. Senti a capacidade motora para comandar quatro patas — foi um grande momento. Sou vagabundo em muitas situações da vida, nunca desconsiderei espichar qualquer oportunidade de lagartear, mas agora sou o mais letal — bem que poderia ser daqueles estilosos e brilhantes que comem pererecas na humidade das florestas da Guatemala.

 

Mordi o tendão de um búfalo adulto e voltei para a vegetação alta. É impressionante como, em situação de perigo, agredir quem é mais fraco — apoiado na ilusão de ser aceito ou poupado — esbugalha todos os pensamentos heroicos, trazendo à tona aquela imposturice que era assoprada para longe quando a imoralidade apontava o trem de pouso. Segui o búfalo por quase três dias, até que ele não teve forças para sair de um lamaçal. O efeito do meu veneno bateu pra valer. Dois dragões estavam me supervisionando.

 

“Vai lá, dá a primeira arrancada de carne”, disse Celso, o komodo de bigode, com um Plaza curto entre as duas pontas da língua bífida.

 

Acordei!

 

Depois desse sonho, saí ligeiro da cama, mas não andei. Sentei minha bunda magra na cama e olhei para as canelas: “Porra! Que canelas finas! Quando uso calça, entre o pé e o joelho parece que tem uma toalha de festa de centro comunitário envolta em um palito de dente”.

 

Sou um homem distraído e me sinto confortável com isso; os estorvos que me fazem perder a aritmética da distração é que me incomodam. No chão, uma meia cinza com duas listras pretas estava ao lado de uma meia preta sem nenhum detalhe. Dei-me conta de que não mantenho uma gaveta específica para as meias: elas estão entre as calças, nos lençóis, nas fronhas e tal e tal. Minhas meias são promíscuas — e eu as invejo.

 

No talagaço do sonho e na jura de não ser suscetível ao que tenta me induzir, saí para trabalhar.

 

Jamais desci tão convicto da escadaria. Abri a porta de vidro, fechei a porta de vidro. Aceitei meu reflexo e até estufei o peito — o que me custou algumas tossidas e uma catarrada na cerâmica.

 

A calçada não era uma miragem: deixou-me chegar. Virei à direita; uma moça, com uma imponente mangueira verde, esguichava água sobre a calçada. Fui para o asfalto. Mais uma vez, deixei-me induzir a uma mudança de rumo. Não foi por medo de me molhar na calçada; foi por respeito a uma trabalhadora. Quem dera eu pudesse me transformar em dragão-de-komodo e ficar por ali, mordendo os tendões dos imbecis que não a respeitassem.

 

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