O Cheiro do Ralo- Cannubis

 



De frente para a minha janela já sem as persianas, contemplo a silhueta de Mr. Robinson do outro lado da rua.
O reflexo da aurora inunda minha sala de estar deixando o ambiente com uma aparência vintage, clássica de filmes americanos.
Em meio ao caos de caixas e sacolas espalhadas pela casa, planejo o que fazer durante uma semana inteira antes da grande mudança.
Mudar para outro estado parecia extremamente excitante enquanto era apenas uma ideia em planilha.
Desmontar, organizar, encaixotar está sendo exaustivo, as embalagens com as mais variadas logos de restaurantes são testemunhas da minha derrota doméstica.
Perdido entre caixas e listas mentais, ergo os olhos e vejo Mr. Robinson ainda do outro lado da rua. Ele aponta sua Canon nova em folha para um emaranhado de galhos secos que eu insisto em chamar de jardim.
Muito provável que tenha visto um casal de roedores acasalando ou uma forma abstrata digna de conspiração.
Eric Robinson é o tipo extravagante que anseia por fama na internet, sempre trabalhando em algo novo para seu canal no YouTube.
Tenta manter-se antenado em novas tendências para atingir o que costuma chamar de "um grande viral".
Me perco nesses julgamentos até a batida na porta me arrancar da distração.
Inspiro fundo, ensaio uma desculpa, e abro.
Na porta, Robinson me cumprimenta com um sorriso de dentes amarelados que não chega aos olhos. O suéter que usa mesmo no clima quente lhe cai pesado.
Sua voz é breve, urgente: Precisa viajar e quer que eu receba suas correspondências por uma semana.
Não que eu fosse incapaz de simplesmente fechar a porta ou negar-lhe o pedido mas continuo parado observando-o enquanto seu corpo balança levemente como uma corda pendurada.
O silêncio atropela minha respiração e sinto o desconforto pairando entre nós.
"Vamos lá, não te custa nada."
Não era de fato um grande favor, mas também não seria uma gentileza.
Claro que aceitei, apesar de não lembrar bem como respondi ao pedido de Mr. robinson, com
certeza a ideia de ter paz fora o motivo que havia me convencido.
Ao cair da noite o vento noturno sopra com cuidado seu hálito invernal nas janelas das casas que parecem guardar seus moradores em cobertores e refeições quentes.
No interior da minha, apenas caixas.
É quando noto.
Uma caixa solitária, imensa, repousa na varanda.
Fecho os olhos, inspiro. Abro a porta e o vento frio me golpeia em cheio.
Arrasto a caixa pra dentro, o papelão raspando o chão, rangendo como estática nos ouvidos.
Procuro na memória: não lembro de ter visto meu vizinho partir.
Encaro a caixa novamente, buscando qualquer lembrança que explique sua presença ali. Mas nada surge. Nem o som de passos, nem o toque da campainha, nenhum sinal de entrega.
"Vamos lá, não te custa nada".
O peso da caixa me lembrava que já estava me custando muito mais que um favor.
📦📦📦 Segunda-feira: 📦📦📦
Chegaram dois envelopes pardos de uma seguradora de veículos. Nada de mais.
Meu bibelô preferido, o deus hindu com cabeça de elefante, serve como peso de papel para as correspondências de meu vizinho.
A brisa fresca dos fins de tarde costumava refrescar a casa. Agora, espalha um cheiro estranho, morno e úmido, quase imperceptível como um papel de parede que você só percebe ao encarar de perto.
📦📦📦 Terça-feira: 📦📦📦
Duas revistas por assinatura chegam junto de um anúncio de uma companhia de viagens com desconto para as Bahamas.
Arrasto os papéis para a mesa, tentando ignorar o volume que se forma.
Mesmo distraído, sinto aquela caixa grande me observando.
Cada vez que levanto os olhos, ela parece ocupar mais espaço no ambiente, mais imponente, como se esperasse que eu a olhasse.
Aliso minhas timelines sem perspectiva de hora, apenas flutuo no sarcasmo das notícias desconexas que os algoritmos me entregam.
Parece que uma garota viralizou por esses dias por supostamente ter várias personalidades, alteregos ou algo assim...
Chamaram a tv e tudo.
O melhor são os vídeos dela alternando entre uma personalidade e outra, virando os olhos como um possuído e mudando o tom de voz.
Ridículo.
Ela provavelmente deve estar ganhando dinheiro com seu show business.
O coração vermelho no canto inferior da tela mostra que eu já havia demonstrado interesse, mas não me lembro de ter visto nada parecido antes.
Aqui, no meu agora, em plena vastidão do nada. Torço o nariz pro cheiro ocre que paira em minha casa, definitivamente não é algo que vem de fora pois as janelas estão fechadas.
Meu entretenimento trivial com o celular vira uma pesquisa desordenada em sites de vídeos curtos e quando lembro de que em meu aparelho também possui relógio, percebo quanto tempo perdi procurando receitas caseiras para aliviar o mal odor.
Citronela para as moscas.
📦📦📦Quarta-feira: 📦📦📦
Hoje parece ser aniversário de Mr. Robinson. Um cartão repleto de selos comemorativos brilhava em um envelope caro.
"Happy birthday to you,
Happy birthday to you,
Happy birthday, my fucking neighbor
Happy birthday to you!"
O maldito cheiro podre teima em desconcentrar meus pensamentos.
Vem do ralo, obviamente.
Ecoa pelos cômodos, sem direção, mas presente em cada fenda, não é possível dizer onde está apenas intuir.
Reverbera pelas paredes e é absorvido pelo meu olfato a ponto de queimar os pelos de minhas narinas.
Nenhuma ratazana passaria pelas tábuas de linóleo da sala. Nada de ratazanas. Talvez os restos de comida dos dias em que eu ainda me alimentava teimem em ocupar a encanação da pia da cozinha.
O cheiro vem do ralo.
📦📦📦 Sexta-feira: 📦📦📦
O deus com cabeça de elefante jaz caído sobre a mobília e ao seu lado um grande maço de cartas, anúncios e envelopes de todas cores.
De todas as correspondências, spams e cartões de aniversário entregues para meu vizinho, nada me atiçava a curiosidade.
Nenhuma das atividades às quais eu me comprometera durante a semana foi concluída.
Meus pensamentos embaralhavam-se como novelos de lã sujos e puídos, e até minha própria presença estava assombrada como se houvesse outro em mim.
Ou talvez eu fosse outro.
E este outro observa cada passo, cada gesto, enquanto o cheiro insiste em invadir minhas narinas como se estivesse vivo, pulsante, respirando junto comigo.
"Batata lavada, cerveja duplo malte, vassouras fortaleza e alvejante com cloro ativo, tudo o que há de melhor para o seu lar"
As vozes da TV surgiam e se mesclavam com as minhas, repetindo, corrigindo, questionando.
"Afinal todas as batatas não eram lavadas antes de serem vendidas ?"
"As cervejas comuns só possuem um único malte?"
Perguntas brotam e são respondidas por outro dentro de mim, ou talvez por vários outros, cada um com sua própria percepção, alguns inclusive acreditam que o alvejante do comercial poderia, resolver o mal cheiro do ralo.

📦📦📦Terça-feira: 📦📦📦

Preciso de um martelo, embora não consiga lembrar exatamente por quê. A caixa onde estavam empacotadas minhas ferramentas está aberta, e o martelo sumiu.
Eu já não sei mais quem sou eu, quem é ele, quem são os demais, e se algum de nós realmente busca solução ou apenas nos conduz mais fundo na confusão.
Cada canto da sala respira comigo, pesado, lento, e ao mesmo tempo sufocante.
O cheiro do ralo se impõe agora como algo quase consciente: fermentado, ácido, viscoso, uma mistura de amônia, gordura rançosa, ferrugem e salmoura que escorre pelas paredes, gruda na pele e penetra cada fenda do meu corpo.
Definitivamente está vivo, pulsando em sincronia com meu próprio batimento..

📦📦📦 Quinta-feira: 📦📦📦

A maioria das caixas está aberta, pois, infelizmente, não tive a ideia de identificá-las.
O zunido das moscas se tornou um sussurro constante. Todos os sons são surdos e meu cérebro lateja.
Batidas na porta.
Meu coração dispara, esperança irracional: talvez Mr. Robinson apareça, vestindo uma de suas combinações absurdas de roupas modernas, oferecendo alguma desculpa pelo atraso.
Mas não.
É apenas outro vizinho, preocupado com sabe-se lá o que.
A cada hora, alguém mais distante aparece, reclamando, me obrigando a refletir sobre como o cheiro se projeta para além das paredes da minha casa.
Minha aparência deve assombrá-los tanto quanto a sensação que o odor provoca: cabelos desgrenhados, olhos injetados, pele pegajosa.
Não troco de roupa há dias.
"É apenas o cheiro do ralo..."
Tento acalmá-los com desculpas ensaiadas, mas as vozes na minha mente me forçam a dizer coisas que não quero.

📦Domingo... Sexta... Segunda... ? 📦

O tempo perdeu forma. Ano, mês, dia, hora… tudo se dissolve no vácuo. Dentro e fora se confundem.
Abro a porta do quarto pela milésima vez.
A cama desapareceu. No lugar, um banquinho de madeira que não lembro de ter visto e, ao teto, uma corda improvisada com lençóis.
Quanta coragem cabe em um suicida?
Minha casa não parece habitada por alguém vivo há anos. A pia deslocada, a torneira pingando direto no chão, o ralo substituído por um cano de PVC expõe gordura, restos de sujeira e memórias de podridão.
Um sorriso rígido rasga meus lábios secos. Nada de ratazanas, nada de restos de comida.
Apenas o martelo, ao lado do cano.
Minha sanidade escorreu por aquele ralo, líquida, invisível, e não deixou vestígios. Pilhas de lixo, roupas, bibelôs, cartas, peças de móveis… todas as caixas reviradas.
Exceto uma.
Uma caixa grande, mole, úmida, deformada.
Meus pés vacilam. Atirar-me no abismo que responde a tudo sem retorno ou encarar o precipício da dúvida?
Prefiro olhar para cima do fundo do poço a olhar pra baixo com a corda no pescoço.
Abro a caixa.
O coração dispara. Nem sinto a respiração... apenas o cheiro pulsa em minhas veias. As mãos que manipulam o papelão não são minhas.
A coordenação motora não é minha. Nada é meu. A curiosidade é o único elo com a consciência.
Dentre as caixas, aquela era a única que não possuía o selo da transportadora.
Olhos humanos jamais podem contemplar impunes uma visão como esta. Escuridão e clareza se entrelaçam brutalmente.
As moscas formam um manto negro, espesso, sobre a caixa, impedindo-me de ver. Tudo é uma massa viscosa coberta de larvas.
Afugento o mosqueiro e o enxame pestilento alça vôo.
Pontos luminosos cintilam. Meus pés flutuam, mas sinto dedos imersos na substância gelatinosa.
Cada respiração é um soco, cada pensamento uma lâmina.
Meu sangue corre frio em minhas veias, nem sinto o ritmo de minha respiração, apenas deixo o ar circular de fora pra dentro do meu corpo trazendo o cheiro do ralo para tão perto que mal consigo me entender como um ser singular.
Faço parte do cheiro tanto quanto ele faz parte de mim. Uma unidade. Podridão misturada e condensada.
Ali diante de mim mr. Robinson em sua versão mais desconstruída finalmente havia chegado de sua viagem.
Nem mesmo agora com seus membros inteiramente fatiados e dividos como peças de carne bovina, deixava de me olhar como se eu fosse inferior a ele.
Seus globos oculares já fora do crânio, pousados estrategicamente no meio da palma de uma de suas mãos, fitavam-me soberbos em meio às larvas.
Escleras brancas de mais para a imundice em que seu corpo se encontrava, arrogantes como sempre.
E eu, incapaz, inválido, desarmado, broxa...
O outro em mim, sorri em minha mente.
Triunfante. Poderoso. Satisfeito.
"A câmera"
"A câmera"
"A câmera"
"A câmera"
"A câmera"
"A câmera"
"A câmera"
Todas as vozes dizem a mesma coisa.
No meio do mise en place que Mr. Robinson havia se tornado, a Canon. A tela manchada de sangue e vísceras me desafiando.
Seguro a máquina, mãos trêmulas, corpo flutuando entre vontade e paralisia. Pressiono Play
Rec.

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