A Coisa da Velha Mansão- Alexander Ribeiro
Ele pensava: “Eu deveria ter escutado. Deveria ter ouvido os avisos, as lendas sobre o velho
mausoléu.” Sentado ao chão, com a barriga aberta e tentando conter as tripas dentro dela com as
suas mãos, ele se lembrava das histórias macabras sobre a casa que comprou...histórias sobre
barulhos horrendos e indescritíveis na madrugada, de rituais satânicos praticados pelo antigo dono e
seus amigos, onde se faziam sacrifícios de moças virgens e se invocavam criaturas, inomináveis …
histórias sobre pessoas que enlouqueciam ao entrar na casa já vazia após a morte do antigo
proprietário...além de outras pessoas que sumiam para sempre...como que sugadas pelas trevas
infinitas do soturno mausoléu. “Eu deveria ter ouvido” era a frase que se se repetia como um mantra
na sua mente, enquanto ficava cada vez mais difícil pensar, conforme o sangue deixava o seu corpo,
e memórias da sua vida bombardeavam seu cérebro como um turbilhão.
Ele havia tido uma vida boa… superou a infância pobre numa favela no Rio de Janeiro, com muito
esforço e estudo. Se formou em direito numa faculdade federal, para a qual passou em primeiro
lugar no vestibular, e teve uma carreira de incontáveis vitórias no tribunal, que o tornaram um
homem bem sucedido e cada vez mais ambicioso e menos escrupuloso. Passou a defender políticos
corruptos e até playboys estupradores, desde que fosse bem pago para isso. Nas horas vagas, vivia
como um bon vivant... rodeado por belas mulheres, frequentando restaurantes caros e viajando para
destinos exóticos... sempre buscando todos os prazeres que o dinheiro propiciasse.
Porém, algo mexeu com ele e o tirou de sua zona de conforto... um acontecimento que o faria
questionar a sua vida por inteiro : ele defendeu o filho de um político de uma acusação de agressão
a sua namorada. Ao fim do processo, o rapaz saiu livre ...mais uma vitória rotineira numa vida de
êxitos. Porém, dois dias depois, o advogado acordou e ligou seu notebook. Como já era de praxe,
entrou num site de notícias pois gostava de se manter informado. E eis que o que leu fez com que
sentisse um frio subir pela sua espinha: “Rapaz mata namorada a facadas”. O rapaz em questão era
o seu ex-cliente.
Apesar de já ter defendido réus acusados de crimes sexuais, nunca havia acontecido, de nenhum
deles ter reincidido nos crimes antes, muito menos ter chegado ao extremo de assassinar alguém.
Apesar de nunca ter sentido remorso antes, agora ele não conseguia deixar de pensar que a culpa era
dele, que se não tivesse defendido o jovem, o que levou o juiz a inocentá-lo, nada disso teria
acontecido. No mês que se seguiu, ele procurou tirar férias, arejar a cabeça e tentar se recuperar do
baque, mas não conseguiu. Ele tinha pesadelos onde a garota aparecia em sua frente, com um
vestido branco cheio de sangue e de seus ferimentos de faca saiam vermes , e ela olhava pra ele
chorando e o chamava de assassino. Ele tentou fazer terapia, parar de defender clientes corruptos,
mas nada tirava aquele peso da sua consciência, e ele passou a sentir vergonha da pessoa que se
tornou. A solução que encontrou foi largar a prática do direito, e se afastar de todo mundo que
conhecia. Então, decidiu sair do Brasil e recomeçar a vida no interior da Inglaterra, país pelo qual
era fascinado desde a faculdade, quando leu ,na biblioteca, um exemplar de Oliver Twist, de
Charles Dickens. A partir dai seu encantamento pela cultura inglesa só fez crescer nos anos
seguintes.
Escolheu então ir para Layer's Pit, uma pequena cidade a 20 Km da industrial e sombria
Birmingham. A pequena cidade, era caracterizada por uma população que ainda vivia de pecuária e
plantações. Só havia um mercado e uma fábrica de sabão... deixando a forte impressão que a cidade
estava parada no tempo. Ao chegar na cidade, ele pretendia viver em alguma casa modesta, mas ao
caminhar pelo lugar numa manhã enevoada e fria, deu de cara com o velho Mausoléu do falecido
milionário Henry Chains. A casa com sua arquitetura gótica e lúgubre, e com estátuas imunes ao
tempo no quintal, o fascinava. Imediatamente voltou para a cidade e foi se informar sobre ela no
pub local. Então vieram as macabras histórias... cético como ele era, achava graça em tudo, e
transgredir superstições sempre foi um prazer pra ele, pois ele vinha de uma família evangélica, que
associava a maioria das coisas mundanas ao diabo… o que o revoltava e o reprimia durante sua
infância e parte da juventude. Portanto, ele não teve dúvidas e foi ate a imobiliária da cidade.
Chegando lá, revelou o seu interesse, e o próprio agente imobiliário, um homem de meia idade,
tentou fazê-lo desistir da ideia, com mais historias macabras e afirmando que alguma coisa horrível
morava no porão daquela casa. O homem dizia que preferia não ganhar dinheiro a alugar aquela
casa maldita pra alguém. Ele riu e insistiu e o agente fechou o negócio, mesmo contra a sua
vontade. Ironicamente, ele ainda disse ao agente que ele era um “péssimo homem de negócios”.
No seu primeiro dia na casa se dedicou a limpá-la, uma vez que ninguém aceitava trabalhar no
local. Só conseguiu limpar a sala, a cozinha, a sala de jantar e o quarto principal no primeiro dia,
uma vez que era impossível dar conta dela toda em um dia só. A noite, descansou lendo um livro de
Hemingway em frente a lareira, ate que não aguentava de tanto cansaço e foi praticamente se
arrastando pra seu quarto, até cair na cama e pegar no sono. Durante a noite acordou ao sentir um
estranho cheiro… um odor indescritível que parecia ser um meio termo entre cheiro de Éter e cheiro
de carne podre. Em seguida, ouviu um som que começou parecido a um cachorro chorando e
evoluiu ate uma espécie de rosnado que não parecia ser de nenhum animal que ele havia conhecido
em sua vida. Ele levantou assustado e chegou a vasculhar a casa em busca de algo, mas não
encontrou nada e voltou a dormir, querendo acreditar que aquilo não passava de algum trote dos
adolescentes da cidade ou de algum adulto fanfarrão .
Em sua segunda noite na casa, ele novamente acordou com o mesmo cheiro e o rosnado agora foi
mais alto, e mais assustador. Ele chegou a sentir um arrepio na espinha quando o ouviu. Apreensivo,
acordou e ao descer à sala para verificar se tinha alguma coisa, achou uma estranha mancha úmida
no chão da sala, e ao se agachar sobre ela e passar o dedo na mancha, ele notou um liquido viscoso
com um cheiro que lhe causou ânsia de vomito. Pela primeira vez, ele se perguntou se as histórias
sobre a casa seriam reais, para em seguida, reafirmar para si mesmo que aquilo não passava de
alguma brincadeira de mau gosto, talvez com a intenção de mandar “o estrangeiro” embora da
cidade... Verificou toda a casa e não achou mais nada de estranho e resolveu voltar a dormir. Porém,
assustado, sua mente foi tomada por macabros pesadelos em que um ritual macabro se desenrolava
a sua frente: pessoas faziam sexo e se autoflagelavam durante o ato, se cortando com facas. Ao
centro da sala havia um altar de sacrifício de pedra ao qual uma jovem estava amarrada. Após todos
os casais chegarem ao orgasmo, um deles, um homem de cabelos grisalhos, e aparentando ter
cinquenta e poucos anos , se levantou, tirou um punhal de baixo da cama e cortou a jugular da
jovem, e seu sangue escorreu por uma canaleta até o centro de um pentagrama. E na hora um
estranho ser de aparência grotesca e indescritível, se ergueu do pentagrama. Ao se deparar com a
perturbadora visão, ele acordou e não conseguiu mais dormir. Aquilo não parecia um pesadelo, mas
uma lembrança… mas como ele podia se lembrar de algo que ele não presenciou? Não, não...
racional como era, ele repetia pra si mesmo, que era apenas um pesadelo, a consequência dos
barulhos que ele vinha ouvindo, e das historias que lhe contaram no pub... nada mais que
consequência da tensão.
Depois do terceiro dia de faxina, era chegada a hora do descanso, e seu corpo cansado quase
desmaiou na cama. Durante a madrugada, novamente o choro rompeu o seu sono, seguido de um
rosnado mais intenso que os das noites anteriores. Um arrepio percorreu sua espinha e o suor frio
brotou de sua testa... e ele quase se urinou nas calças como uma criança. Desta vez não conseguia se
convencer mais que aquilo se tratava de uma armação ou “pegadinha”. Após passar alguns
segundos paralisado na cama pelo medo, ele se levantou, tomado pela curiosidade de descobrir que
macabro som era esse que vinha atormentando seu sono. A curiosidade era maior que o seu medo...
ele precisava saber o que era aquilo. Descendo à sala, desta vez ele se deparou com uma mancha
ainda maior daquele estranho liquido viscoso. E enquanto a fitava, ouviu outro rosnado agora vindo
da cozinha … andando lentamente e tomado pelo medo, ele entrou na cozinha e acendeu a luz , e no
chão havia outra mancha, desta vez menor daquele, estranho liquido. Para se proteger da coisa, ele
foi ate a gaveta de facas e pegou a maior que viu. Eis que outro rosnado, desta vez mais lento e
arrastado, quebrou o silencio. A origem do som parecia vir do porão da casa ...receoso, ele passou
pela cozinha e seguiu a esquerda pelo corredor que havia depois, ate chegar á porta do porão. Foi
então que ele foi tomado por outro arrepio: a porta estava aberta, e aquele estranho odor de Èter
com futum emanava de lá. Após ficar parado, fitando a porta escancarada diante de si, ele tomou
coragem e entrou. Puxou a corda que acendia a luz e ao fazê-lo, notou que haviam manchas do
liquido viscoso nos degraus. Ele foi descendo lentamente, desviando do líquido. Mas eis que
durante a descida, outro rosnado ele ouviu, e desta vez foi o mais assustador, pois a coisa parecia
estar próxima … demais. Sentiu o mais intenso arrepio na espinha que sentiu na vida, e suas pernas
tremeram e ele escorregou, caindo sobre a escada e o próprio corpo, batendo com as costas sobre o
chão abaixo da escada. Machucado pelo impacto, ele se levantou com dificuldade. Suas costelas
doíam muito e ele ficou com receio de te-las fraturado. Sua camisa estava toda úmida do liquido
viscoso, e o cheiro era tão insuportável quanto perturbador.
Apos pegar a faca, ele começou a seguir o rastro do liquido viscoso que continuava a direita por
entre quadros que estavam no chão, dentro de sacos. Curioso, ele olhou os quadros e eram pinturas
de pessoas, e ele as reconheceu: eram as pessoas que estavam praticando o ritual com o qual ele
sonhou. Ele então botou os quadros em seu lugar e seguiu adiante, e o caminho dava pra uma outra
sala dentro do porão, atrás de uma porta secreta, com o formato da parede, que agora estava
escancarada, e, que para seu espanto, era a sala onde ocorreu o ritual... o pentagrama ainda estava
no chão, e haviam manchas de sangue que pareciam estar lá há anos. Assim como as velas da antiga
cerimonia, No centro do pentagrama havia um excesso do liquido viscoso. Era um conjunto
horripilante, algo realmente saído de um pesadelo.
Enquanto fitava o macabro cenário, eis que ouviu aquele mórbido rosnado, agora bem atras de si.
Seu corpo foi tomado por um terror gélido, e começou a tremer, e mesmo com muito medo , ele se
virou para trás para olhar a coisa. E o que viu era quase indescritível em palavras: era um corpo que
se parecia com um tronco de árvore andando sobre uma cauda que parecia uma lesma. Do corpo
saiam tentáculos rosados parecidos com os de um polvo. E acima destes haviam olhos negros como
a escuridão da mais macabra noite, e eram vários … dezenas de olhos fazendo uma completa volta
no tronco, e acima deles na extremidade do tronco, havia uma grande boca cheia de dentes
pontiagudos, aberta para o céu, e dentro dela parecia haver outra, com a mesma quantidade de
dentes. Era realmente uma visão inominável, indizível, impronunciável... e ele sentia tanto medo
quando fascínio e sua mente não conseguia assimilar a visão diante de si.
De repente a coisa deu outro rosnado e empalou seu corpo na altura da barriga com um de seus
tentáculos. Ele caiu no chão segurando as tripas e foi se arrastando para o canto da parede, e
enquanto o fazia , tinha a certeza de que aquele era seu fim. Foi então que começou a pensar que
ele deveria ter dado ouvidos as historias do povo da cidade. Com dificuldade se encostou na parede
e conforme perdia sangue, ficava mais dificil pensar. Foi então que se deparou com uma visão: o
falecido ex-dono da mansão apareceu de côcoras ao seu lado. O milionário o olhou nos olhos e
disse:
Se sinta honrado por ter sido morto por um ser tão belo e perfeito... um ser criado pelos
próprios antigos... aqueles que são mais velhos que o próprio tempo… e que qualquer
universo... aceite o destino que ele escolheu para você . Eu mostrei a minha lembrança para
você em seu sonho para que entendesse o que lhe esperava… e aceitasse seu destino.
Ele não conseguia compreender o que ouvia, mas falou para o homem:
Vá a merda …
O milionario sorriu e completou:
Ser alimento de um ser perfeito é uma honra. Desfrute.
Seu espectro, então, sumiu, e ele viu a criatura se aproximando dele há uns 3 metros de distância.
De repente ele foi tomado pela ideia de que aquele macabro destino era um castigo divino pelos
seus pecados, e ficou surpreso sobre o quanto religioso estava sendo...logo ele que sempre foi
cético. Diante da constatação, ele sorriu.
A criatura se aproximava dele e o medo o invadia. Ele fechou os olhos e esperou o seu destino. O
terror que inundava cada milímetro de seu ser era imensurável. Ele então ouviu o ultimo som de sua
vida… o derradeiro rosnado da coisa. Em seguida, sentiu seus dentes abocanharem sua cabeça e o
odor pútrido e maldito do hálito da coisa. Foi a última coisa que sentiu.



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