O Dedo, a Quina e a Morte- Alan Cassol

 



- Como pode a vida empacotar numa escuridão total sem lembranças?
- Acho que a morte é o retorno ao que éramos antes de nascer.
- E o que éramos?
- Não faço a menor ideia, por isso da escuridão...
- Mas deve haver algum sentido. Uma recompensa, uma punição.
- O medo é a punição, disso eu sei. Achar que devemos temer em troca de um ingresso para o paraíso, além de chantagem, é uma desculpa preguiçosa.
- E como saber, se ninguém voltou para contar? E a religião?
- A nego.
- Como?
- Religiosamente.
- Não acha raso não levar em conta séculos de estudos e cultos?
- Não.
- E no apego, quando a solidão fria dos últimos instantes acariciar a soberba estampada no rosto, pouco a pouco, como se o avião estivesse caindo e chegasse a hora da máscara cair?
- Que máscara?
- A que usamos para não crer. O medo. Mas não o medo de não encontrar um paraíso, o de admitir a criação como fraqueza. Será que a morte imaginada como um apagar das luzes eterno é uma espécie de celebração à vida, ou será o desejo por um lugar melhor uma esperança de que seremos elevados a uma significância eterna, já que para alguns a mediocridade é um processo necessário até o prêmio final?
- Como pode a solidão fria acariciar meu rosto se estarei usando a suposta máscara? A comunicação é abstrata, eu sei, mas como posso levar a sério? O fim, e se eu puder contemplá-lo, porque pode não dar tempo, sabe... essas coisas de acidentes e assassinatos?! Bom, vou pedir perdão. "Me perdoa, vida, pois eu não pequei o bastante. Desculpa por todas as maçãs que apodreceram ao meu lado enquanto eu passava fome."
- Mas eu insisto na pergunta: pode alguém negar 100% essa existência e não questionar essa possibilidade quando está sozinho?
- Não acho relevante. Nem necessário é. Penso que duvidar e devotar são limitações parecidas. Acreditar que tudo é possível incluí a possibilidade de não ser. A imaginação não pode ser açoitada. Penso em tudo o que pinta por aqui. Acho que, no meu caso, se existir "os três de Dante" e qualquer outra "passagem alternativa", vou de boas em todas ou não vou em nenhuma, se não existir nenhuma. Em todo caso, imagino que estarei no lucro. É como não alimentar expectativas porque está bom aqui.
- O que acontece é que a vida pode parecer inconsequente para quem não se apega em algo. Não parece à deriva?
- E quem se agarra tão forte em algo e se desprende de todas as outras possibilidades? Não parece que se afogou por não ter aceitado o bote?
- Acho que vou dormir.
- E se não acordar mais?
- E por que não acordaria?
- Nunca se sabe.
- Devo me sentir ameaçado?
- Deve se sentir como quiser.
- Acha que temo a possibilidade do escuro? Pois saiba que não. Também não quero passar a impressão de que estou desistindo dessa conversa, bom, estou, mas é porque
você é fraco, não vale a pena. Boa noite.
- Boa noite.
- Ah, não desliga a luz da cozinha quando for deitar.
- Tá certo.
- Ah, fecha a porta do seu quarto, você fala alto enquanto dorme.
- Tudo bem.
- Trancou a porta da sala?
- Ainda não. Mas vou sair um pouco, não pretendo voltar antes da luz.
- Certo. Vê se não morre por aí.
- Vê se não vive demais. Até os paraísos acabam em cinzas.
- Já saiu? Vai, vai... não esquece da porta.
- Não esquece de a próxima vez não terminar uma conversa. Fique. Quem termina fica brabo e acusa o outro de incompetência.
- Já saiu? Não?
- Acho que vou ficar. Na verdade, vou falar sozinho na cozinha.
- Então eu vou aí continuar essa conversa.
- Não venha, já estou saindo. Eu acredito que você se conformou, mas não sabe admitir que pode estar errado.
- Então vai se foder.
- Eu vou, mas você não vai.

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