O Homem Que Não Ri.- Alan Cassol

 



É imprescindível observar os passos de um homem que não ri. Na hora do almoço, ao levar o lixo para fora, na seção de congelados de um supermercado... tudo é uma grande aventura para o homem que não ri.

Lembro-me de tê-lo visto pela primeira vez quando entrou na sala de cinema e sentou-se ao meu lado. Fitei o perfil daquele homem de nariz acuminado e olhos tão profundos e melancólicos quanto uma sonata de Schubert. “Será a própria figura dos dias mais tempestuosos que me aguardam?” — devaneei, olhando para a tela de projeção, que parcialmente iluminou a sala com os créditos iniciais de Nosferatu (1922).

O homem saiu do cinema; eu estava à espreita. “Quero ver para onde ele vai, porque, provavelmente, é o meu destino. Não o destino de hoje, mas o meu fim?!” Ele andou por uns 15 minutos, parou, deu meia-volta, me fitou, tirou um pedaço de papel do bolso do casaco e me entregou. Depois, foi embora sem dizer uma palavra.

Sentei-me em um banco de ponto de ônibus e comecei a ler o bilhete.

“Caro desconhecido que me seguiu hoje, você deve ser mais um desses desesperados que se desprendem de toda razão e flutuam no próprio pensamento até baterem a cara em uma realidade imutável e desencorajadora. Tu não passas de um tongo! Veja! A rainha do xadrez se desdobra para todos os cantos, conquista reinos, se sacrifica... tudo para proteger um rei vadio e pretensioso. Por que você se perde? Por quem? Sua cabeça vai quebrar se insistir em golpeá-la contra a parede. Olhe pela janela e verá que, do lado de fora, a parede também sangra. Talvez você tenha uma chance de se acertar com ela: espere o sangue secar, leve panos quentes e úmidos e comece a limpá-la. Não é só você que sangra quando insiste.

Você lembra da minha fisionomia, não é? Eu não tenho mais tempo para lutar; deixei passar. Não se transforme em mim, ou viverá entregando bilhetes para tentar se redimir do irremediável. Não espere. Lembre-se: o amor só vai.”

Sorri e levantei do banco de ponto de ônibus.

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